Mesmo debaixo de fogo, MP tem de permanecer imune aos ataques, diz Lucília Gago

Em final de mandato, procuradora-geral da República lamenta que Ministério Público ainda não disponha de autonomia financeira.

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Lucília Gago à entrada do congresso do Ministério Público, em Ponta Delgada Sindicato de Magistrados do Ministério Público
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Em final de mandato, com funções a terminar em Outubro próximo, a procuradora-geral da República, Lucília Gago, deixou esta quinta-feira um recado à classe que comanda: os procuradores devem manter-se imunes às investidas e ataques de que estão e continuarão a ser alvo.

A representante máxima do Ministério Público falava no XIII Congresso dos Magistrados do Ministério Público, que começou hoje em Ponta Delgada. E foram várias as alusões que fez à chuva de críticas suscitadas pela actuação dos procuradores em inquéritos como a Operação Influencer, que levou à demissão do primeiro-ministro António Costa, ou os processos que envolvem dirigentes da Madeira, para confessar “desesperança”, “desalento e desagrado”.

“Importa, não obstante as investidas e os ataques, que o Ministério Público zele, no escrupuloso respeito da Constituição e da lei, pelo cumprimento das suas atribuições, imune, ontem como hoje e também no futuro, a quaisquer pressões ou ingerências, directas ou indirectas”, sublinhou Lucília Gago, lamentando que algumas das suas decisões tenham gerado “sentimentos adversos, alguns altamente tóxicos e até odiosos”.

"Somos confrontados e fustigados pelo questionamento sobre a adequação dos meios empregues e sobre os timings das diligências e por conjecturas sobre a intencionalidade subjacente, situada fora do contexto processual, numa perigosa amálgama apresentada pelo menos com sibilinas alusões quase inevitavelmente atributivas de uma presunção de culpa à Procuradora-Geral da República e ao Ministério Público, reservando-lhes o papel de exclusivos ou principais responsáveis das páginas mais negras da realidade judiciária que hoje vivemos", descreveu a magistrada.

Manifestando-se preocupada com esta “convergência opinativa” desfavorável à classe que representa, a procuradora-geral da República a fez questão de aludir ao contributo que para o ambiente crítico têm dado, “por vezes com estrondo, destacadas figuras” – e nas quais incluiu, sem nomear ninguém, também colegas do Ministério Público. Recorde-se que um dos seus antecessores, Cunha Rodrigues, exigiu explicações públicas sobre o transporte, pela Força Aérea, da cerca de centena e meia de inspectores que ali foram realizar buscas. "Os aviões militares não são uma empresa de transportes", argumentou.

Mas este não foi o único pesar de Lucília Gago. Num claro reparo ao poder político, a mesma responsável declarou que um dos maiores desalentos que levará consigo se relaciona com a falta de consagração da autonomia financeira do Ministério Público. “Torna-se cada vez mais flagrante, com efeito, que só ela proporcionará a afectação de recursos necessários ao eficaz combate à criminalidade, particularmente a mais grave, a mais censurável e violenta. Só a autonomia financeira permitirá também garantir a efectiva autonomia do Ministério Público relativamente aos demais poderes do Estado”, avisou.

Num tom que seguiu de perto o da procuradora-geral da República, o presidente do Sindicato de Magistrados do Ministério Público, entidade organizadora do congresso, ironizou sobre os "disparates" proferidos pelos comentadores televisivos residentes sobre o sector da justiça. "Se equivalessem à produção de riqueza, Portugal teria seguramente o maior PIB do mundo", observou Adão Carvalho, sem poupar também reparos aos responsáveis políticos que, embalados pelas queixas dos advogados dos arguidos dos megaprocessos, se predispõem a alterar leis por dá cá aquela palha.

"Ainda recentemente um comentador conhecido do horário nobre afirmava que a primeira coisa que os dois principais partidos deviam fazer após as eleições era um pacto para resolver o problema dos 21 dias de detenção e ser alterada a lei, secundando alguns jurisconsultos que, entretanto, se fizeram ouvir. Quantos interrogatórios demoram 21 dias? Um, apenas um", o da Madeira, recordou, para elencar em seguida aqueles que considera os verdadeiros problemas do Ministério Público: a falta de meios para combater o crime de colarinho branco e o risco de paralisação dos serviços por falta de funcionários judiciais.

A necessidade de um pacto na área da justiça, mesmo sem usar este termo, foi outro tema abordado nos Açores por Lucília Gago, para quem urge promover convergências de entendimento relativamente à "inadiável reformulação" dos principais diplomas respeitantes à organização dos tribunais e ao direito penal e processual penal.

Sem apontar culpados, a dirigente máxima do Ministério Público teve ainda tempo para criticar os atrasos registados na justiça: "Não serve a justiça, nem nenhum dos concretos protagonistas dos casos investigados, a existência de processos penais pendentes, sem decisão final consolidada, ao longo de extensos períodos temporais que chegam a perdurar mais de uma década".

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