Fantasmas. Será que gostam de mim?

Sempre que ele vem a minha casa deteta recados sobrenaturais, vozes do além com timbre de madeiras antigas inchadas pela humidade. Ele faz uso da fé. Eu uso o desumidificador.

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"Como assim, estão sempre aqui? E conversam com os meus fantasmas-privados, os que habitam dentro de mim" Rita Lagarto
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“A tua casa tem fantasmas!” Tenho um amigo que acredita em fantasmas. Eu não acredito em fantasmas, mas acredito nos meus amigos. Vai daí…

O meu amigo é dado a convicções oraculares, crenças mágicas, superstições várias. Confia no poder de adivinhação que se esconde numa fatura do supermercado encontrada ao acaso no bolso de um casaco, na mística por trás do número de rolos de papel higiénico no armário, na administração supervisionada do destino por parte de entidades abstratas que se manifestam em pequenos acidentes domésticos, e sobretudo… nos fantasmas que comunicam através do soalho flutuante a estalar, ou que se fazem ouvir no crepitar de pacotes de ibuprofeno, e das portas dos armários a chiar… CLICK… CRAC... RRR…

Sempre que ele vem a minha casa deteta recados sobrenaturais, vozes do além com timbre de madeiras antigas inchadas pela humidade. Ele faz uso da fé. Eu uso o desumidificador.

A minha negligência diante dos visitantes transcendentais talvez se explique porque desde sempre me habituei a viver rodeada de sons intrusivos: cresci numa aldeia no sopé de uma serra, e se há coisa que quem cresce no campo sabe é o quão barulhento o silêncio pode ser — constantemente povoado de zumbidos, uivos, latidos, miares, cacarejares e ruídos vários.

E talvez por estar familiarizada aos efeitos sedativos da cacofonia, em adulta escolhi morar durante quase uma década no Martim Moniz, em Lisboa, numa rua que a ser devidamente estudada, provaria certamente ser o lugar com o maior sortido sonoro de Lisboa. Dia e noite, a sinfonia de sirenes das ambulâncias do hospital rompia o ar, enquanto os ruídos de uma carpintaria-serralharia marcavam o compasso frenético, a que se juntava o chiar dos travões dos autocarros da Carris (num rosnar de animal de grande porte com a barriga demasiado cheia), os sons das comunicações da esquadra da polícia e o rugir das suas respetivas motas, os berros de arrumadores embriagados, transeuntes em disputas verbais, guinchos de elétricos enferrujados e… Crème de la crème… O som de corte de vidro da Loja de Espelhos e Molduras ao lado do meu prédio — loja esta, que exibia orgulhosamente um letreiro que dizia: “Silêncio” ao lado de outro que dizia: “Executa-mos todo o tipo de placas” — torneado por uma moldura dourada a adornar o deslize indecoroso (desde então sempre que me chateio no trânsito estico o dedo do meio e grito “Executa-mos!” numa homenagem à minha antiga rua).

Além da algazarra exterior, o meu prédio era habitado por uma vizinha de baixo, surda, e que escutava Deus pela via mais direta e eficiente: o canal religioso evangélico brasileiro, com o volume do televisor no máximo, enquanto os vizinhos de cima seguiam a antiga filosofia de Heráclito, “Tudo flui, nada permanece”, e a mobília deles fluía constantemente, nunca permanecendo na mesma divisão, arrastada pelo chão normalmente a altas horas da noite.

Contudo a experiência sonora mais imersiva daqueles dias era a de escutar os noturnos passeios dos ratos que se deslocam festivamente entre os forros dos prédios da Baixa de Lisboa, com uma presunção trocista própria de mamíferos clandestinos. Durante as minhas insónias era frequente ser presenteada por uma banda sonora de patinhas que se moviam nas entranhas da minha casa, em labirintos secretos e profundos escavados no interior das paredes. E apesar do som ser repugnante, sempre o vi como um sinal de que a cidade estava, de alguma forma, viva. O que seria da cidade sem a vastidão do submundo de esgotos? Sem o ruído das suas pragas subterrâneas, dos intrusos, dos parasitas? Despojada e em silêncio, como num filme pós-apocalíptico…

Com este portfolio sonoro, não será portanto surpreendente que eu tenha uma certa imunidade ao ruído. Mas sempre que o meu amigo vai lá a casa, não evito ficar com uma pulga atrás da orelha, um fantasma atrás da orelha, mal a canalização decide zurrar ou a caixilharia das janelas se expressa mais efusivamente. E se estes sons forem realmente cochichos de fantasmas domésticos? Isso quer dizer que eles estão aqui? Que estão sempre aqui?! A inspecionar a minha privacidade? Aqui? Dentro da minha casa, o portal para a minha solidão mais desinibida, despojada de pudores, de formalidades, de compostura?

A vigiar-me, logo a mim, que nunca aderi aos dogmas da Igreja precisamente por me inquietar a ideia de que Ele está no meio de nós — que maçada! —, quando tantas vezes o que me apetece é estar absolutamente sozinha, sem ninguém a reparar (muito menos Ele!), a bisbilhotar os meus pecados! Só me faltava fantasmas mirones, a espiarem todos os meus passos feitos Escutas numa Operação da PJ, e pior ainda, a descobrirem os meus segredos mais deselegantes, as minhas distrações menos dignas.

“Estás a dizer que há fantasmas, e que eles estão sempre aqui?”

“Sim! Não me digas que só acreditas no que vês?” Ora essa… Claro que não acredito no que vejo! Há a lei da gravidade, o buraco do ozono, a taxa de inflação… o amor! Com aquela é que ele me tramou! Sou uma devota do que não se vê mas se sente… Fiquei logo paranóica… Que desonesta esta existência invisível dos seres imateriais: uma pessoa nunca sabe se estão por perto, encostados ou se, pelo contrário, se ausentaram e foram assombrar sazonalmente as férias de alguém num paradeiro mais exótico.

CRAC… no quarto... Pronto! É um fantasma! Deve ter estado a olhar para mim este tempo todo… Será que está aqui desde que cheguei? Será que viu que engoli acidentalmente uma golfada de água do duche porque usei o chuveiro como microfone e quase me afoguei no refrão das Spice Girls? Será que sabe que às vezes tenho preguiça de fazer a reciclagem e atiro pacotes de iogurte para os resíduos orgânicos? Será que repara que como bocados de comida que caem ao chão sem os lavar, que espreito o vizinho da frente quando ele faz exercício em tronco nu, que meto o telemóvel em modo avião e digo que estou numa reunião de trabalho enquanto me sento a ver a Fleabag pela décima vez, e repito a cena em que ela se joelha em frente ao padre e… será que… Não!!! Telefono ao meu amigo…

“Mas espera lá… Não há regras? Uma espécie de Código de Conduta dos Fantasmas? Acho indecente espreitarem tudo!”

“Pois... Como queres que eu saiba?”

“Mas não devias saber isso? És especialista!”

Zango-me com o amigo, exijo detalhes, orientações, um livro de instruções do oculto. Quer dizer que os fantasmas me veem a discutir sozinha, quando não está cá ninguém? Sabem esse meu segredo sórdido que é o de ter contendas violentíssimas em que sou extremamente assertiva, acutilante, direta, confrontativa com as pessoas com quem tenho desavenças, sem elas estarem presentes?

Tenho fantasmas a assistir aos meus duelos em frente ao espelho nos quais avalio quais as expressões de cólera me deixam mais sensual, para que no dia em que finalmente confrontar os meus adversários, o faça de forma impecavelmente sexy? Será que troçam de mim? Será que se recostam a comer pipocas enquanto arranco cabelos, rio sozinha, entorno o chá de nervos, queimo torradas por distração emocional, finjo que estou em amena cavaqueira com o Ricky Gervais no seu jato privado, simulo o discurso de agradecimento enquanto ganho o Óscar de Melhor Argumentista-Atriz-Realizadora sentada na minha cama? Será que assistem a tudo como num filme?

Será que me ouvem sussurrar “Vai pró…” Enquanto imagino os rostos dos remetentes imaginários nos quadros da parede (e que ainda por cima o faço baixinho para não ter problemas com a Administração de Condomínio) “Vai pró… Executa-mos!”, baixinho…

Será que me viram daquela vez a chorar com o rímel todo esborratado quando regressei embriagada da festa em que te vi? Será que se compadecem quando pareço um quadro do Munch, um “O Grito” de trazer por casa? Toda feia, desarrumada, desgrenhada? Que me julgam quando meto o dedo no nariz como se tivesse 4 anos?

Como assim, estão sempre aqui? E conversam com os meus fantasmas-privados, os que habitam dentro de mim — esses sim, reais, enormes, monstruosos — e se movem nas minhas entranhas, em labirintos profundos escavados no interior do meu corpo (e que mesmo que me assombrem, espero que nunca me abandonem, senão corro o risco de ficar vazia, como uma cidade pós-apocalíptica)?

Será que os fantasmas gostam de mim? Será que me vão continuar a seguir? Episódio após episódio, temporada após temporada da minha vida errática? Será que regressarão a minha casa, mesmo depois de tudo? Vão continuar a assistir aos meus dramas, à minha intimidade, à minha existência mais vulgar? Vão voltar? Mesmo depois de me conhecerem realmente?

CLICK… CRAC... RRRR… Foi a madeira do chão? A humidade das janelas? Não. Espero que não. Espero que tenha sido um fantasma.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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