Como Deus criou as crianças

A moral desta “Criação das Crianças” alivia-nos a todos da culpa — vieram programados assim, só nos resta sentar-nos para trás e gozar a viagem.

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EDUARDO MOSER/SANDRADESIGN
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Mãe,

Já imaginou como foi o momento da criação de uma criança?

Deus diz ao seu secretário:

— Pedro, quando os bebés nascerem preciso que durmam muito para o cérebro se poder desenvolver.

— Ah, óptimo. Projecto-os, então, para dormirem das 9 horas da noite às 9 da manhã, enquanto os pais dormem.

— Não, não! Faz com que acordem mais ou menos de três em três horas.

— O quê?

— Sim, sim. Quero que acordem sempre que os pais estiverem a entrar no sono profundo.

— OK… Isso é um bocadinho maquiavélico, mas tudo bem. E durante o dia?

— Torna-os muito barulhentos, com pouca noção do risco, uma aversão natural a obedecer, com uma vontade insaciável de ver o mesmo desenho animado repetidamente, e claro uma energia sem limites para brincar. Programa-os para fazerem birras tanto para adormecerem, como para acordar. E já agora, faz com que odeiem entrar no banho, mas também detestem de lá sair.

— Ui, de certeza?

— De certeza absoluta. E não te esqueças de lhes por um sistema imunitário muito reativo, para apanharem todas as viroses, para as poderem pegar aos pais.

— Meu Deus...

— Meu Deus, nada. Ainda não acabei: arranja maneira de que o cérebro racional só amadureça mesmo lá para os 20 anos.

— Mas, Senhor, por essa altura o cérebro dos pais já estará em degradação, e não vão poder desfrutar muito tempo dessa nova calma.

— (risos) E já agora faz com que percam totalmente as estribeiras se uma bolacha se partir ou se abrirmos uma banana por eles.

— Mais alguma coisa?

— Quando nascerem os primeiros bebés faz-me pipocas!

A mãe sempre me disse que Deus tinha sentido de humor, mas isto é diabólico! Beijinhos.


Filha,

Já tens argumento para o próximo filme do ano, garanto-te que ganha um Óscar.

Tal como Deus, também eu vou comprar um barril grande de pipocas doces e salgadas, misturadas, e sentar-me a vê-lo. Tenho a certeza de que a sala estará cheia de pais que, finalmente, vão entender que o comportamento dos filhos nem em mérito, nem tão pouco desmérito seu, e sentir um profundo alívio.

A moral desta “Criação das Crianças” alivia-nos a todos da culpa — vieram programados assim, só nos resta sentar-nos para trás e gozar a viagem. É que, ao contrário do que dizes, em lugar de ser diabólico esta versão predestinada é genial, obrigada.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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