O mal de muitos políticos e o mito de Narciso

Afadigam-se numa contínua exibição, marcada pela ansiedade na procura de lugar apropriado à imagem que de si criaram. São vários os exemplos que poderiam ser dados, não se limitando a Portugal.

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Recorremos muitas vezes aos mitos clássicos, greco-latinos, cujo simbolismo propicia, directa ou indirectamente, a compreensão de determinados comportamentos humanos. Na sua maioria, contam castigos aplicados por deuses a outros deuses, com qualidades e defeitos idênticos aos dos humanos, partilhando também da sua imensa variedade de sentimentos. Invocarei o mito de Narciso, lembrando Metamorfoses do poeta latino, Ovídio (43 a.C.-18 d.C.). Apaixonado pela sua própria imagem, que não se cansa de admirar nas águas de uma fonte, consumindo-se nesse gesto punitivo, em que se esquece também de comer e de beber, Narciso acabará por morrer, metamorfoseando-se o seu corpo na bela flor amarela que guarda o mesmo nome.

É essa paixão por si próprio, excluindo toda a poesia do mito, que encontramos em certos políticos, enraizados na estafada arte de pseudo-servir e que, numa infantilidade aliada à arrogância, se expõem em auto-elogios que pretendem significar atitudes desinteressadas e solidárias. Amantes de si próprios, afadigam-se numa contínua exibição, marcada pela ansiedade na procura de lugar apropriado à imagem que de si criaram e alimentaram. São vários os exemplos que poderiam ser dados, não se limitando a Portugal, e determinante para uma escolha foi a flagrante semelhança de discursos, nomeadamente na opção por determinadas ideias e vocábulos, já gastos porque repetidos e desvalorizados no seu sentido. Referir-me-ei a Augusto Santos Silva e a Charles Michel.

Começarei pelo último, de nacionalidade belga e exímio coleccionador de cargos: presidente de câmara, ministro (em 2000 e em 2007-2011), líder do Partido Liberal, Movimento Reformador (entre 2011 e 2014 e em 2019), primeiro-ministro (2014-2019), presidente do Conselho Europeu (2019-2022 e 2022-2024), actualmente no segundo mandato que terminaria a 30 de Novembro de 2024. A sua recente demissão criou séria agitação em Bruxelas, pela urgência que veio impor de rapidamente ter de se encontrar sucessor, após as eleições europeias, a realizar entre 6 e 9 de Junho próximo.

Sem dúvida que os seus prazos e o seu sentido de responsabilidade não coincidem com os do Conselho Europeu e por isso Charles Michel não perdeu tempo, inscrevendo-se nas listas do seu partido para concorrer como “candidato principal”, obviamente elegível, a deputado europeu. A descida de cargo é abismal, mas tudo estará sob controlo, sendo apenas preciso aguardar pacientemente pelo dia em que voltará a contemplar-se exuberante, num voo mais distinto. E porque a ambição e a vaidade impedem o espírito crítico e a noção de ridículo, não surpreende a justificação apresentada pelo ainda presidente do Conselho Europeu, cujas palavras-chave sublinho: «Quero servir onde for útil e penso que posso ser útil a nível europeu».

Augusto Santos Silva, ainda também presidente da Assembleia da República, tem, ao longo dos anos, rodopiado igualmente por inúmeros ministérios, fontes onde lhe é permitido contemplar-se à-vontade, manifestando-se sempre disponível para servir em qualquer lugar que lhe seja indicado. Dessa pretensa humildade, que mascara uma natural arrogância, são exemplo as suas palavras, por coincidência, iguais às de Charles Michel: “Eu não rejeito nada em absoluto porque se rejeitasse coisas em absoluto não teria procurado servir o meu país nas ocasiões em que foi necessário e nos lugares em que se entendeu que poderia ser mais útil(PÚBLICO, 21/7/2022).

A sua pródiga e longa actividade política tê-lo-á afastado da Faculdade de Economia do Porto onde leccionava, deixando entrever que servir o seu país se sobrepôs à carreira docente, ou seja, ter-se-á exigido um sacrifício, curvando-se à vontade do partido. Há bem pouco tempo, e fazendo um breve parêntesis, tivemos exemplo semelhante com Miguel Guimarães que, desejando regressar à prática da medicina, se viu arrastado para a lista de deputados do PSD, convicto de que irá servir o país. Regressando a Augusto Santos Silva, transcrevemos palavras suas que confirmam o que acima expusemos: “Houve uma altura em que disse que esperava que o PS me deixasse acabar a minha atividade profissional no meu lugar de professor catedrático da Faculdade de Economia do Porto […] espero que pelo menos me deixem ir dar a última aula à faculdade”, (Rádio Renascença, in Hora da Verdade, 3/3/2022). Na verdade, Augusto Santos Silva jubilar-se-á em 2026, ano das presidenciais, e daí a preocupação em deixar recado ao PS para que o liberte nesse dia de festividade pública em que, obviamente, brilhará.

Agora que a situação política, em Portugal, veio exigir novas eleições, em Março próximo, e que a sua opção de apoio colidiu com a vitória do outro candidato socialista, o que aliás já anteriormente acontecera, Augusto Santos Silva, afastando-se cada vez mais do regresso à sua faculdade, continua a pensar seriamente nas presidenciais, clímax que seria na sua carreira de cargos. Pôs, naturalmente, o dedo no ar porque quer continuar a “servir o [seu] país”, com lealdade e muita humildade, como, de novo, salientou, em Ponte da Barca, num evento da Comissão Europeia, no Verão de 2023: “Posso repetir o que já disse: não enjeito em absoluto qualquer candidatura, seja ela a que cargo for, incluindo à minha junta de freguesia”.

A este candidato precoce já se juntou igualmente Marques Mendes, não variando o discurso: “Se um dia perceber que com uma candidatura à Presidência da República serei útil ao país, tomo essa decisão”. A sedução pelo cargo também não calou André Ventura, que admitiu ser candidato, ou não o justificasse a estrondosa votação de 99%, no último Congresso. No partido, a funcionar com a ajuda de um estranho deus e com uma corte que entusiasticamente aclama, reverencia e bajula o rei, não há naturalmente quem lhe faça concorrência, tornando-se único e insubstituível. À receita pouco criativa de servir o país e de lhe ser útil, junta ainda a fervorosa devoção a um deus desconhecido, adepto de “limpezas” diversas.

Como em Narciso, mito clássico, o mal de muitos políticos está na recusa em não se conhecerem, descurando qualquer reflexão sobre si próprios que não seja o deslumbramento pela imagem que de si acriticamente construíram.

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