Descentralizar para crescer

Concretizar uma efetiva descentralização exige que alguém tenha vontade e capacidade para abdicar do poder que tem e transferi-lo para outros.

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«A coisa mais poderosa que uma pessoa com poder pode fazer é abdicar dele». São as primeiras palavras de um artigo que Andy Haldane, conhecido economista britânico, assinou este mês no Financial Times. Haldane parte deste argumento para fazer duas propostas audazes ao Governo britânico: (1) separar claramente a política de finanças públicas da política de desenvolvimento económico; (2) descentralizar poderes e competências para as regiões e áreas metropolitanas.

A primeira proposta parte da constatação de que, embora seja fundamental para a estabilidade económica, a preocupação natural de um ministro das Finanças com a política das contas certas deixa pouco espaço – ou até impede – para uma política eficaz de investimento e de promoção do crescimento económico. Criar condições económicas e promover o investimento público (incluindo em infraestruturas, habitação e qualificações) necessário para o crescimento justo e sustentável é um desígnio tão (ou mais) importante quanto o equilíbrio orçamental. Este objectivo requer uma estratégia dedicada e central nas prioridades do Governo.

Isto aplica-se igualmente à realidade portuguesa. O recém-eleito secretário geral do PS lançou as bases para uma nova política industrial, uma ideia que é bem-vinda. Será importante que os restantes partidos contribuam também para esta discussão com ideias claras sobre como promover o desenvolvimento económico, incluindo qual o tipo de crescimento que pretendem para Portugal e qual o papel do Estado neste propósito.

A segunda proposta é ainda mais ambiciosa e, a meu ver, ainda mais urgente. Parte de uma ideia que é clara há muito tempo um pouco por toda a Europa, mas que teima em não vingar, tanto no Reino Unido como em Portugal, dois dos países mais centralistas do continente: a unidade geográfica por excelência para as políticas de desenvolvimento económico é a região. Não é possível termos uma economia próspera no plano nacional sem termos administrações fortes (e com competências além do planeamento estratégico) entre o governo central e o poder local.

Poderia usar o resto deste artigo para discutir a geografia ideal para a implementação de políticas económicas em Portugal continental (se as cinco regiões, as áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais, ou outra geografia intermédia), mas prefiro destacar uma questão muito mais importante: como assegurar o efetivo poder de decisão. Neste aspecto, a frase inicial de Haldane é, a meu ver, a síntese perfeita da principal dificuldade em contrariar o centralismo. Concretizar uma efetiva descentralização exige que alguém tenha vontade e capacidade para abdicar do poder que tem e transferi-lo para outros.

Transferir poder não é nada fácil por vários motivos. Por um lado, é natural que os responsáveis políticos que têm ideias e desígnios fortes queiram assegurar que as medidas em que acreditam sejam implementadas e não revertidas por um outro nível de governo. Por outro lado, num país de tradição fortemente centralista, é natural que as instituições do Estado Central concentrem ainda grande parte dos quadros mais qualificados e tenham processos mais eficazes de elaboração e execução de políticas. Compreende-se a relutância em transferir competências para níveis inferiores de governação quando isso pode implicar, num momento inicial, um decréscimo de eficiência ou até de qualidade (embora a experiência nos diga que, passadas estas «dores de crescimento», sistemas mais descentralizados tendem a produzir políticas melhores e mais participadas). Há ainda a ambição pessoal daqueles que estão no poder e o desejo de continuar a ter influência e reconhecimento público, que os torna pouco abertos a abdicar de parte dos seus poderes.

Mas só existe verdadeira descentralização quando há de facto transferência de poder de decisão. Estas três razões (certamente haverá outras) significam que a descentralização é um processo tão importante como difícil. Ela implica descentralização política, com eleições diretas de líderes regionais. Exige uma liderança forte e reformista no plano nacional, preparada para mudar mentalidades, mas também para encontrar consensos. Requer humildade e um enorme espírito de compromisso democrático para entender que as soluções mais justas em democracia podem não ser as que eu defendo. Implica confiança nas pessoas e nas instituições locais e regionais. Acima de tudo, exige coragem para avançar e testar novos modelos (e, como em tudo que é novo, por vezes falhar). Mas, sem ela, dificilmente vamos conseguir a prosperidade económica que todos desejamos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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