O caos na Saúde

Alargar aos beneficiários do SNS, através de convenções, as urgências dos hospitais privados onde estão agora os médicos que saíram do publico parece ser a solução mais lógica.

Ouça este artigo
00:00
06:58

Num artigo publicado no PÚBLICO em Fevereiro de 2020 sobre A crise do Serviço Nacional de Saúde, deixei esta pergunta: será que a crise actual é diferente das anteriores? Ora, o que tem acontecido nos últimos meses, faz pensar que sim, que estamos de facto perante uma situação nova, particularmente grave, que pode levar ao colapso do SNS. As perguntas que faço agora são outras: estarão os protagonistas desta crise preparados para lidar com esta situação? Serão capazes de ir além de manobras tácticas e da abordagem aritmética dos problemas: quantos médicos, quantos clínicos gerais, quantos euros, quantas horas de trabalho, quantos meses de listas de espera?

Tudo isto é importante mas, quando se trata de medicina, de médicos e de saúde dos doentes, é preciso mais. Esta é a razão por que arrisco esta reflexão sobre alguns aspectos da assistência médica em Portugal.

Comecemos pela História. O diploma que criou o SNS, em 1979, foi sobretudo uma proclamação política de acordo com a qual o Estado português se declarou obrigado a fornecer assistência médica geral (os meios então disponíveis), universal (ao alcance de todos os cidadãos) e gratuita (mais tarde, tendencialmente gratuita). Embora o Estado fosse na altura o grande prestador, passava a ser o único financiador que recorria, quando necessário, ao sector privado (análises, imagiologia, hemodiálise, etc.) através de convenções.

O panorama da medicina portuguesa era bem diferente do que é hoje: as carreiras médicas garantiam não só o ensino médico pós-graduado, mas também a avaliação interpares e a formação de equipas de urgência organizadas hierarquicamente e coesas. Os médicos estavam, na maior parte, colocados em hospitais públicos onde gostavam de trabalhar apesar dos baixos salários, os quais compensavam com a actividade privada.

Na grande Lisboa existiam dois serviços de urgência São José e Santa Maria – então já submetidos a enorme pressão, não por escassez de médicos nem por falta da especialidade de “urgentista”, mas, simplesmente, porque não estavam dimensionados para uma procura tão elevada. Comissões então nomeadas apresentaram várias soluções: Serviços de Atendimento Permanente (SAP) espalhados pela cidade, consultas de triagem à entrada da Urgência, envio dos casos não urgentes para os cuidados primários. Tudo isso falhou. A afluência às urgências manteve-se elevadíssima e os corredores do "banco" continuaram cheios de doentes em macas, por falta de camas nas enfermarias, muitas delas ocupadas com casos sociais.

Em 1987, foi realizado no "banco" de Urgência de São José um trabalho de campo que se propôs identificar as causas desta situação e encontrar soluções, baseadas em dados e não apenas em opiniões. Ficou então bem claro que um dos problemas da urgência se situava a montante, porque os doentes vinham ao "banco" por “iniciativa própria” e quase nunca enviados por médicos. Parecia evidente que era necessário dotar os centros de saúde de meios e credibilidade para serem a primeira opção nas situações agudas ligeiras e nos problemas de saúde que não exigissem cuidados hospitalares. Acessibilidade, meios e credibilidade, numa lógica “doente/médico-assistente” (incluindo visitas domiciliárias), parecia ser a solução capaz de transformar a missão e a imagem dos centros de saúde para passarem a ser a porta de entrada do sistema e um dique na corrida às urgências. Ficou também clara a necessidade de criar serviços, a jusante, que libertassem os hospitais de doentes que ali permaneciam asilados nas enfermarias.

Há que reconhecer que a situação é agora muito diferente. A alteração progressiva da pirâmide etária levou a um aumento exponencial dos idosos com patologias complexas e a uma maior sobrecarga das urgências. A sinistralidade aumentou e, ao mesmo tempo, persiste a imagem pública de que é nos serviços de urgência que existem especialistas e meios técnicos que permitem resolver todas as situações. Assistiu-se também à destruição das carreiras médicas, que teve um efeito negativo sobre a atitude e a disponibilidade dos médicos. Além disso, registou-se uma revolução tecnológica que tornou a medicina mais complexa e muito mais cara.

Apesar do número de serviços de urgência ter aumentado (só em Lisboa e arredores, abriram urgências em S. Francisco Xavier, Amadora-Sintra, Garcia de Orta e Loures, para não falar em Setúbal, Vila Franca de Xira e Cascais), a procura continuou a crescer e manteve-se sempre superior à oferta.

Além dos problemas a montante e a jusante, ainda por resolver, mais outro surgiu agora dentro das próprias urgências: a falta de médicos. Quer isto dizer que temos poucos médicos? Os dados disponíveis mostram que a relação do número de médicos por mil habitantes é, em Portugal, superior à média da OCDE. O que se passa então?

Passa-se que os médicos deixaram de estar disponíveis para fazer tantas horas extraordinárias e tão mal pagas, sobretudo depois verem que o Estado afinal tinha dinheiro para remunerar generosamente tarefeiros. O SNS, que viveu durante muito tempo da disponibilidade dos profissionais e do seu “amor à camisola”, viu-se agora confrontado com mais este problema. Mas acontece também que os médicos – por razões que não vêm agora para o caso – têm migrado do sector público que oferece urgências multidisciplinares e gratuitas durante 24 horas, para o sector privado onde existem serviços de “atendimento permanente” para doentes com seguro ou que podem pagar e, de preferência, sem patologias “pesadas” como a alta sinistralidade. Sendo assim, alargar aos beneficiários do SNS, através de convenções, as urgências dos hospitais privados onde estão agora os médicos que saíram do sector público, parece ser a solução mais lógica. Mas, pelos vistos, ninguém quer falar nisso. Porquê?

Da parte dos hospitais privados entende-se que seja assim. Mesmo argumentando que tudo o que diz respeito à saúde esteja condicionado por regras éticas e por um sentido de serviço público, é natural que empresas que atraem vultuosos investimentos procurem o lucro e prefiram as casuísticas programadas. A abertura de serviços de urgências com equipas de serviço 24 horas, para além dos custos, iria criar uma situação de risco e imprevisibilidade que, naturalmente, não desejam.

Mas, por parte do Estado, parece incompreensível que, por razões ideológicas, como tem sido dito, ou por outros quaisquer motivos, não seja encarada esta solução, numa altura em que se vive nas urgências públicas um ambiente de caos e tragédia, em que aos custos por doente tratado que em teoria são iguais para todos, públicos e privados, e podem ser calculados – se acrescentam outros custos não contabilizados: horas perdidas, sofrimento e, provavelmente, mortes evitáveis.

Ninguém ignora que as negociações serão difíceis e a engenharia financeira complicada, mas perante uma situação de “medicina de campanha”, onde reina o caos, espera-se dos decisores, coragem, imaginação e vontade política. No fundo trata-se de distribuir equitativamente os doentes urgentes com os custos a cargo do “Estado-financiador” pelos locais onde estão médicos capazes de os tratar.

Dir-se-á que isso não é possível. Mas então o Estado terá rapidamente de legislar para que os médicos, a quem forma como especialistas, permaneçam nos seus quadros por um período igual ao tempo de formação. Além, claro está, das medidas a montante e a jusante que ainda estão por concretizar.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários