A mulher é o futuro do homem – a imensidão da vida e luta de Odete Santos

De cada vez que ouço as palavras de Aragon cantadas por Jean Ferrat, La femme est l’avenir de l’homme, é em ti que penso, nesse futuro de que a humanidade precisa e pelo qual nunca deixaste de lutar.

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Isto não é uma homenagem – se soubesses que te escreveria agora estas palavras irias ficar chateada. A tua aversão a consagrações, elogios ou reconhecimentos, mesmo que justos, era de tal forma evidente que ninguém lhe escapava. Igual à aversão que tinhas a alguém dizer qualquer coisa que não fosse verdade.

Que o diga Jaime Gama, ao passar-te a palavra no debate sobre a Lei da Paridade, a 31 de março de 2006: “A sr.ª deputada Odete Santos, que acaba de chegar”. Imediatamente corrigido: “Não, não! Já cheguei há muito! Que remédio se não corrigir com um “acaba de chegar à fila da frente da sua bancada, e tem imediatamente acesso à tribuna, para uma intervenção.

Foste a criança que adorava o pai, detestava escolas separadas e andava à pedrada com os miúdos lá na Guarda. Nnunca deixaste de ser frontal (fosse quem fosse o destinatário), com um sentido de ética e justiça que norteava o pensamento, a escrita, a vida. Uma vida sobre a qual pouco falavas. O teu olhar era sempre para o futuro, esse de que tinhas saudades.

Um sentido de humor refinadíssimo, ninguém escapava ao teu olho clínico. A gargalhada estridente e contagiante e a intolerância ao atrevimento dos ignorantes, tantas vezes traduzido no sarcasmo, e o hábito (que me contagiou) de ir sempre buscar as palavras de poetas que imortalizavas.

Contigo aprendi a questionar, a estudar e a jamais ter a ousadia de replicar acriticamente fosse o que fosse. Até hoje imagino se descansarias. Havia sempre algo mais que ias ler, um filme que querias ver, um tema para estudar, um teatro para representar, nessa tua humildade desarmante – dizias sempre que precisavas de estudar, saber mais, que não sabias o suficiente. E eu que todos os dias aprendia algo contigo ou era impelida por ti a ir procurar, estudar, conhecer.

Chamam-te a “mãe dos julgados de paz”, da tua caneta foi construída coletivamente legislação que mudou a vida das mulheres portuguesas (a despenalização da IVG, a disponibilização gratuita da pílula RU486, o primeiro projeto sobre reprodução medicamente assistida) e propostas que, se aprovadas, seriam da maior justiça para os trabalhadores, para o acesso ao direito e aos tribunais. Inúmeras matérias discutiste coletivamente que contribuíram para engrandecer não só o pensamento sobre matérias centrais para uma sociedade mais justa como questões basilares para a existência de um Estado com democracia, liberdade e igualdade.

Mas tanta vida houve sempre para lá do Parlamento (e, mesmo aí, o grupo de teatro onde eras a Branca de Neve, peça que não me recordo porquê, nunca chegámos a representar): o teatro (esse amor tão grande que lhe tinhas), a poesia, os casos que defendias em tribunal (mulheres acusadas de interromper a gravidez, camaradas que exerciam direitos e liberdades fundamentais, a defesa intransigente contra qualquer norma que limitasse direitos constitucionais), os livros que escreveste, os debates em que juntaste procuradores e advogados alertando para os perigos dos ataques aos direitos fundamentais.

Essa forma de ser e de viver sempre de acordo com os princípios que defendias, com os ideais e militância que abraçaste no Partido que sempre foi teu, nas coletividades onde a cultura era de e para todos...

Um retrato teu nunca será possível, tal é o teu legado. Um legado comprometido e que transformou tantas vidas, e continuará a fazê-lo, porque a tua tarefa é a tarefa dos milhares de militantes comunistas que a continuarão. Foste quem me mostrou Chaplin, Aragon, Drummond de Andrade, Nazîm Hikmet e tantos que lhes perdi a conta. E de cada vez que ouço as palavras de Aragon cantadas por Jean Ferrat, La femme est l'avenir de l'homme, é em ti que penso, nesse futuro de que a humanidade precisa e pelo qual nunca deixaste de lutar.

Eu, tal como tantos outros, ainda que sabendo o quão detestavas elogios, tantas vezes fui incapaz de deixar de me emocionar, de sentir correr as lágrimas, tal era a forma e a emoção com que transmitias a reflexão coletiva, as palavras de resistência. Ficou célebre (e tão acertada foi) a intervenção em 2012, no Congresso do PCP, que nos deixou arrebatados pela força das tuas palavras. “É preciso resistir contra toda a espécie de injustiças que o Governo teima em levar a cabo. (…) A um país de Abril que já conheceu dias de progresso e bem-estar e que agora se vê empobrecido, rendido ao capitalismo mediante as políticas de uma Santíssima Trindade da troika (….) deixamos um trecho do nosso Almeida Garrett: 'E eu pergunto aos economistas, políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?'

Contigo aprendi que “É em frente que vamos, não é verdade? É em frente que vamos”. Palavras fiéis que Paulo Raimundo não deixou de relembrar. Também ao Paulo e à tua Luísa (não a do poema, a de carne e osso, que nunca saiu do teu lado) devo o privilégio da imensidão do conhecimento, cujas portas me abriste, e a tranquilidade de te saber sempre em boas mãos.

A todas nós, mulheres, todos nós, trabalhadores, todos nós que lutamos, só uma coisa podemos fazer: seguir em frente. Contigo ao nosso lado.

Obrigada, Odete.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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