Donald Trump encontrou nos memes uma máquina de propaganda online

Grupo de criadores de memes já se auto-intitula a “Máquina de guerra online de Trump”. Divulgam conteúdo racista, homofóbico e misógino, que enaltece a figura do ex-Presidente norte-americano.

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Donald Trump em campanha para a presidência do Partido Republicano Reuters/BRIAN SNYDER
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Já puseram a cabeça de Joe Biden no corpo de um peru assado, a cara de Ron DeSantis numa personagem de The Office e uma fotografia manipulada de Volodymyr Zelensky a dar um abraço ao Presidente norte-americano.

A página C3PMeme, como escreve o New York Times, já se autoconsidera a Máquina de guerra online de Trump. Com recurso a publicações (discutivelmente) humorísticas, recheadas de piadas racistas, misóginas, homofóbicas e xenófobas, exaltam a figura do ex-Presidente dos Estados Unidos e ridicularizam os seus oponentes

Foi num comício de Trump que um dos vídeos da página de memes captou a atenção do ex-Presidente norte-americano. O vídeo, chamado Let’s get Ready to Bumble, mostra uma compilação de gaguejos, enganos e tropeções de Joe Biden, acompanhados pela música Get Ready For This dos 2 Unlimited. Agradado pelo vídeo, Trump aproveitou a ocasião para fazer sugestões de melhoria à compilação. Em resposta, a página C3PMeme devolveu uma versão final do vídeo que integra, efectivamente, as alterações propostas.

Segundo o New York Times, o grupo não trabalha oficialmente para Trump, ainda que já tenha, alegadamente, recebido pedidos específicos da equipa responsável pela campanha do ex-Presidente. O porta-voz da campanha, Steven Cheung, já abordou o tema, considerando que os criadores de memes são apenas voluntários e que “todas as campanhas políticas têm voluntários”.

Tal como Trump, também o filho, Donald Trump Jr., e Cheung já partilharam, em múltiplas situações, os memes nos seus perfis das redes sociais.

Memes já fazem parte do ecossistema político norte-americano

Já há algum tempo que as redes sociais se tornaram plataformas de excelência na política norte-americana. Quando Barack Obama se candidatou pela primeira vez, lembra Inês Amaral, professora do Departamento de Filosofia, Comunicação e Informação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), foi no Facebook e no Twitter que arranjou uma forma de chegar aos mais jovens.

Era apenas uma questão de tempo até os memes também serem instrumentalizados – e desde então, nas campanhas de 2012, 2016 e 2020, não faltaram. Como disse Brenden Dilley, um dos criadores de memes apoiantes de Trump, citado pelo New York Times, não tem de ser verdade, tem de ser viral.

“Tanto como veículo de propaganda política, como na difusão de desinformação, os memes sempre funcionaram bem. São uma espécie de manifestações culturais e ideológicas e agora estão a ser coaptadas em torno da desinformação, de forma mais maciça”, explica a professora da Universidade de Coimbra. “Os memes políticos são normalmente usados para tentar pegar em erros ou questões que possam associar os políticos à hipocrisia. Tentar passar mensagens que ou validam aquilo em que as pessoas acreditam, ou colocam em causa esses valores.”

Em alguns casos – como é o da campanha de Trump – sob o lençol do humor passam-se mensagens com carácter misógino, homofóbico e idadista. Há também conteúdos que abordam várias teorias da conspiração. “Geralmente, estes memes políticos acabam por transmitir raiva”, resume Inês Amaral. Há dois ingredientes que definem a eficácia dos memes: quem é representado (figuras públicas ou grupos marginalizados, por exemplo) e quem os partilha.

O valor do meme também advém do facto de ser extremamente barato e fácil de produzir, por ter um alcance desmedido e potencial longevidade. Chavões de Trump como “Make America Great Again” e “Stop the count!” ainda habitam o ciberespaço, quase três anos depois de o ex-Presidente abandonar a Casa Branca, depois de ter perdido as eleições contra Joe Biden.

Como consegue alcançar milhões de pessoas por todo o mundo em breves instantes, este método assenta como uma luva na estratégia de comunicação da campanha de Trump, que passa por difundir várias mensagens, para vários grupos ao mesmo tempo. Enquanto Obama usou os novos media para falar às gerações mais jovens, a professora da FLUC não está certa de que Trump tenha em vista uma geração específica à qual pretende chegar.

“Eu francamente acho que aquele tipo de discurso que é veiculado, que vai a tudo o que é ódio possível, acaba por abarcar um conjunto grande de gerações. E existem alguns discursos que são, infelizmente, transversais a todas a gerações: o discurso contra os imigrantes, o discurso racista, o discurso xenófobo”, explica. “A sua campanha é cross-plataforma. No Facebook estão as pessoas mais velhas, no Instagram estão pessoas de várias faixas etárias. [Até] o TikTok, onde estão as pessoas mais novas, está cheio de campanhas do Trump.” Inês Amaral ressalva ainda que, plataformas como o Discord e o Telegram, menos populares em Portugal, também são terreno fértil para “muitas correntes de conteúdos virais”.

Como, para todos os efeitos, são conteúdo humorístico, os memes habitam um espaço moral cinzento onde tudo é permitido. Um dos vídeos feitos pela página C3PMeme, por exemplo, mostra Joe Biden, o filho Hunter, Bill Clinton e outras figuras norte-americanas a “assumirem” terem sido agressores sexuais.

Inês Amaral sublinha que no ecossistema político norte-americano isto não gera consequências: “Do ponto de vista da regulação e do que é a liberdade de expressão, tudo é liberdade de expressão. Podem dizer o que quiserem, as maiores alarvidades. Trump diz sistematicamente coisas absolutamente loucas, disse durante o tempo em que era Presidente, e não acontece nada.”

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