2023 não cabe em 13 segundos

Fico aflita quando depois do Natal as redes sociais são invadidas por vídeos da vida que deixam a vida de fora.

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"Quando tentamos enfiar o ano inteiro num vídeo de 13 segundos e com uma única música de fundo vamos, claro, escolher unicamente os seus momentos sorridentes" Edward Cisneros/Unsplash
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Quando todos os dias, depois do nosso duche matinal e dose profilática de stress para deixar os filhos na escola, nos sentamos em frente de quem nos abre as portas do seu coração e nos permite tocar o que de mais íntimo carrega… quando todos os dias, essas pessoas dão provas que não estão só a confiar na nossa competência: estão também a depositar nesta relação toda a sua esperança num “nós” capaz de sarar e inspirar… quando todos esses dias são abraçados com a consciência da enormidade que isto representa, é inevitável que imediatamente sintamos o peso da responsabilidade de guardarmos em nós tanta(s) vida(s).

É por isso, e pela consequente consciência de que não há um caminho a direito para destino nenhum, que as curvas e contracurvas se podem revestir de beleza e que as mudanças de direção são mais vezes surpresas do que fracassos, que fico aflita quando depois do Natal as redes sociais são invadidas por vídeos da vida que deixam a vida de fora.

Também eu, todos os anos, seleciono as fotografias mais bonitas para colocar no álbum de família que faço a cada janeiro. Também eu me permito serenar a ver os sorrisos dos meus filhos quando folheiam o álbum ao longo de todo o ano seguinte e contam, vezes sem fim, as histórias em pano de fundo de cada um daqueles cliques. Mas esses álbuns, que partilhamos apenas com os que nos visitam a sala, têm histórias silenciosas nas entrelinhas: a pessoa que já não aparece, o aniversário que não foi fotografado porque não se celebrou, a viagem que foi ali porque a de acolá precisou de ser cancelada, a mãe de óculos escuros – que nunca usa – porque a mancha do olho espreitou nesse dia… conseguimos, assim, a história completa do ano: a que se vê e a que se sabe. Partilhada na troca de olhares e abraços silenciosos.

Outra vez: é por isso, e pela consequente consciência de que não há um caminho a direito para destino nenhum, que as curvas e contracurvas se podem revestir de beleza e que as mudanças de direção são mais vezes surpresas do que fracassos, que fico aflita quando depois do Natal as redes sociais são invadidas por vídeos da vida que deixam a vida de fora — é que quando tentamos enfiar o ano inteiro num vídeo de 13 segundos e com uma única música de fundo vamos, claro, escolher unicamente os seus momentos sorridentes… mas a plateia para esse vídeo não sabe do guião silencioso.

Não conhecermos o guião silencioso que subjaz aos curtos vídeos a que somos expostos vez atrás de vez cultiva em nós, mesmo nos mais cínicos, a sensação de que os nossos 13 segundos não seriam tão gloriosos. O que fiz, afinal, com os últimos 365 dias? Por que razão andei, afinal, tão preocupado? De onde vem, afinal, esta tristeza que me parece revestir os dias? O que atingi, afinal, de todos os objetivos a que me propus?

São estas as perguntas que antecipo à chegada a 2024: quando, depois do meu duche matinal e dose profilática de stress para deixar os filhos na escola, me sentar em frente de quem me abre as portas do seu coração e me permite tocar o que de mais íntimo carrega. Uma pausa no processo que tínhamos iniciado, o colo ao seu ano que foi de tanta coragem, tantas conquistas, tanta luta, tanta persistência e que perante o tanto dos outros parece nada.

Gostava que fossemos mais justos quando analisamos o ano em frente a quem não lhe conhece os contornos e os não ditos, gostava que travássemos o uso do cor-de-rosa num contexto de cúmplice contaminação como as redes sociais. Gostava que cada um desses vídeos pudesse trazer consigo um pequeno asterisco ou obrigação de ler os termos e condições: é que para que se vivam todos aqueles momentos de mergulhos, gargalhadas, brindes e abraços assinamos também com os momentos de dúvida, expetativa, desilusão, trabalho árduo, lágrimas e cansaço.

2023 não pode caber em 13 segundos nem ter uma única música a ritmá-lo. E que bom: que bom que é que para se Viver, tenha de se viver tudo!


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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