Potência ambiental ou petrolífera? “Contradições” assombram políticas de Lula

Diminuição do desmatamento da Amazónia foi vitória clara das medidas ambientais do Governo brasileiro. Mas aposta no petróleo e Congresso desfavorável tiram força às ambições de Lula da Silva.

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Lula da Silva no Dubai durante a COP28 REUTERS/Thaier Al Sudani
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As palavras são do início de 2023, mas vale a pena relembrá-las. “Nenhum outro país tem as condições do Brasil para se tornar uma grande potência ambiental”, disse Luiz Inácio Lula da Silva a 1 de Janeiro, no discurso de tomada de posse da Presidência do Brasil, no Congresso Nacional, em Brasília. Apesar da força daquela frase, um ano depois é muito difícil não olhar para aquela intenção e para o primeiro ano de política ambiental do seu Governo com ambiguidade.

Ao mesmo tempo que houve uma melhoria indesmentível em relação ao desmatamento da Amazónia, a notícia de que o Brasil quer integrar a OPEP+ (Organização de Países Exportadores de Petróleo mais uma série de países incluindo a Rússia) e ampliar a exportação de petróleo vendendo centenas de blocos de combustíveis fósseis em vários locais do país, naquilo que foi chamado “leilão do fim do mundo”, causou múltiplas críticas.

Por causa de passar a pertencer à OPEP+, um passo que foi notícia durante a COP28, a Cimeira do Clima que decorreu no início de Dezembro, no Dubai, o Brasil até arrecadou um galardão de Fóssil do Dia, atribuído pela Rede de Acção Climática.

“O Governo Lula fecha 2023 com avanços concretos importantes na política ambiental e climática, mas também com contradições”, explica ao PÚBLICO Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, uma rede composta por mais de 100 organizações. “O Brasil precisa decidir se quer ser uma potência ambiental, um líder climático mundial, ou um petro-Estado poderoso. As duas posições são claramente incompatíveis”, acrescenta a politóloga, ex-presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O terceiro Governo de Lula da Silva recebeu nas mãos instituições públicas e uma situação ambiental alvo de quatro anos de desmonte material, político e simbólico do ex-Presidente Jair Bolsonaro. Durante os quatro anos de Bolsonaro, o desmatamento da Amazónia aumentou 59,5%. O desprezo dado pelo ex-Presidente à protecção da natureza promoveu um sentimento de impunidade para quem quisesse assaltar a maior floresta tropical do planeta.

Além de ser um património natural, a Amazónia tem uma importância climática quer a nível regional, na produção de chuva para outras áreas daquele continente, quer a nível mundial, como sumidouro de carbono. Mas a mineração, a tomada ilegal de terras, os incêndios e o narcotráfico têm vindo a ameaçar cada vez mais o bioma amazónico, já pressionado pelas alterações climáticas (veja-se a enorme seca deste ano).

“A Amazónia é a região mais pobre e mais violenta do país, com territórios marcados pela ausência do Estado”, descreve Suely Araújo. A crise humanitária dos yanonamis denunciada em Janeiro foi um exemplo daquela situação. “O crime ambiental na região está cada vez mais conectado com grandes quadrilhas criminosas que actuam no tráfico de drogas e de armas”, diz.

No discurso de tomada de posse, Lula comprometeu-se a alcançar o “desmatamento zero” da Amazónia. Durante os primeiros seis meses de 2023, houve uma redução de 22% do desmatamento, de acordo com o Instituto Brasileiro de Pesquisas Espaciais (Inpe), mas Suely Araújo acredita que, ao fim deste ano, o saldo terá sido ainda mais positivo.

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A Amazónia continua a ser ameaçada REUTERS/Ricardo Moraes

“A eficácia das acções de controlo do desmatamento na Amazónia é o principal trunfo do primeiro ano” de governação, diz a politóloga. “O Governo intensificou muito as acções de comando e controlo, com mais operações de campo e também remotas, com o aumento do número de autuações e das apreensões de instrumentos e produtos do crime ambiental”, refere.

Embora a política ambiental de Lula da Silva esteja articulada entre vários ministérios, como fez questão de frisar Marina da Silva, ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, quando discursou na COP28, as forças internas do Governo, composto por ministros vindos de diferentes partidos, trazem ao de cima as contradições apontadas por Suely Araújo.

Foi o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, pertencente ao Partido Social Democrata, quem anunciou que o Brasil deveria entrar em 2024 na OPEP+, fazendo parte dos países observadores. “Deve ser dito que o sector da energia responde pela incoerência na narrativa do Governo Lula em termos climáticos”, sublinha Suely Araújo.

Um dos argumentos para a aposta na venda e exportação do petróleo é a possibilidade de financiamento de políticas sociais. Mas a politóloga discorda desta visão. “O petróleo não tem mudado a realidade de concentração de renda das regiões do país nas quais é explorado há muitos anos”, refere.

Indígenas e marco temporal

As dificuldades da imposição da agenda ambiental ampliam-se quando se olha para o Congresso brasileiro, onde a bancada ruralista tem um peso forte. Em Dezembro, a maioria do Congresso votou contra um veto imposto pelo Governo sobre a lei do marco temporal para a delimitação de terras indígenas. Sem o veto que Lula defende, só será possível considerar um território como pertencente a uma comunidade indígena – e por isso passível de ser demarcado – caso tenha estado ocupado pelos indígenas a 5 de Outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal do Brasil democrático.

No entanto, aquela data enquanto marco temporal ignora os direitos originários das comunidades indígenas e o facto de estes povos terem sido alvo de perseguição e extermínio durante séculos. Na prática, o marco diminui as áreas passíveis de serem demarcadas, o que favorece o sector do agro-negócio. Em resposta à votação no Congresso, os partidos Rede Sustentabilidade e Partido Socialismo Liberdade (PSOL), juntamente com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, apresentaram esta semana uma acção ao Supremo Tribunal Federal para derrubar a lei.

“Ninguém conhece melhor nossas florestas nem é mais capaz de defendê-las do que os que estavam aqui desde tempos imemoriais. Cada terra demarcada é uma nova área de protecção ambiental. A estes brasileiros e brasileiras devemos respeito e com eles temos uma dívida histórica”, disse Lula, no seu discurso inaugural, explicitando que essa era uma das razões para a criação do já famoso Ministério dos Povos Indígenas. “Vamos revogar todas as injustiças cometidas contra os povos indígenas.” Um ano depois, a incerteza continua.

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