José Soares, poeta da Nazaré – bondade, lucidez e coragem

É pena que um poeta, contista, filólogo e ensaísta desta envergadura não seja (re)conhecido. Por outro lado, para quê interpretá-lo mal e sujeitá-lo à mediocridade da nossa estupidez?

Mas é bom que se saiba
Que ninguém tem poder para matar os mortos.

José Soares, Máquina do (Contra)Tempo

O José Soares morreu. Era o meu melhor amigo. E julgo que não estarei enganado, se disser que era nessa consideração que ele me tinha. Dizem que quando morre uma pessoa destas (ele tinha 101 anos), morre uma biblioteca: que idiotice! Não há nenhuma biblioteca, nem montra de lombadas, comparável a uma pessoa. Para não dizer que sabedoria e afecto são indiscutivelmente superiores ao conhecimento reunido nas estantes.

Cheguei atrasado ao funeral. Vinham todos já a sair da casa mortuária, entre eles, bons amigos como a Anabela e o Manuel Isaac da Biblioteca (BN), o poeta Jaime Rocha e o jornalista Mário Galego (poeta também, como é sabido), o pintor Francisco Abreu Pessegueiro e alguns mais.

Foi bom ouvir a voz do Mário Galego, surdinada no cortejo e etérea como na Antena 1, e tudo, nesses breves minutos, me pareceu irreal, e me pensei na pele do Totó regressado à vila do Cinema Paradiso: faltava ouvir o sem-abrigo a reivindicar a praça, “a praça é minha, a praça é minha”. A Nazaré teve também um indigente assim, um tal Joaninha, que fazia uma espécie de bramido e se incomodava com os carros mal estacionados. Foi bom isso.

Mas não pude dizer nada do que queria ter dito, no “momento solene”. Não era muito, mas seria justo. Não se deve chegar atrasado ao funeral do melhor amigo. Ele compreenderá sempre, mas seremos nós quem se penalizará.

O José Soares é um pouco como o rio da minha aldeia: pertence a menos gente. E, desse modo, aqueles a quem pertence são privilegiados, têm-no mais, podem gozá-lo melhor, abonados pela sorte.

Uma só vez escreveu num diário nacional e foi aqui no PÚBLICO, em 6 de Janeiro de 2012 ("Situações incómodas em português"), num artigo de opinião sobre linguística. O José Soares era inteligentíssimo. Para além disso, somava-lhe bondade (não limitada à solidariedade e ao companheirismo), lucidez (essa atenção ao mundo e a cada um de nós) e coragem (coisa rara, a que restaura em alguém a liberdade de dizer o que realmente pensa, a despeito do incómodo). Não é fácil ter um amigo com estas três características reunidas. Mas depois havia todas as outras: a paciência, a elegância, o talento para nos amar e sofrer connosco.

Foto
José Soares Associação de Artistas da Nazaré

Uma vez, numa sessão de homenagem à sua pessoa, lembro-me de ter dito “nunca vi ninguém assim”. E é verdade. Seria necessário viver umas quantas vidas para encontrar uma pessoa destas. Era arrebatador. E, no entanto, não fazia qualquer esforço para me cativar: bastava sê-lo.

Há poucas semanas, num dos últimos emails da nossa correspondência (dantes trocávamos cartas), e em resposta a um poema que lhe dediquei, com um título indubitavelmente wallaciano – Ele que traz a paz –, José Soares escreveu-me aquelas que foram as últimas palavras que dele li e “ouvi”: «Meu CARO AMIGO: Já lhe respondi mas a mensagem não seguiu. As suas palavras teriam que me sensibilizar. Muito obrigado. Mas não terá feito confusão? Quem vem trazer a paz não sou eu, é o Papa. A sério: Vou repetir isto, pela quadragésima vez, mas sempre com o que de melhor tem o meu carácter: você é o melhor amigo do mundo. Não quero inflacionar esta mensagem de adjectivos. Penso que uma palavra basta, OBRIGADO, seguida de outra: Um grande abraço».

Partiu uma pessoa que o país não conheceu. Mais uma. Não foi distinguida por nenhum Prémio Pessoa nem promoveu qualquer tipo de séquito consensual à sua volta. O seu carácter desinteressado abominava tal. A verdade é que o país nada sabe das pessoas que o perfazem. É uma pena que um poeta, contista exímio, filólogo e ensaísta da envergadura do José Soares não seja (re)conhecido pelos portugueses. Mas, por outro lado, para quê interpretá-lo mal e sujeitá-lo à mediocridade da nossa estupidez? Szymborska, diz-se, foi uma das poucas escritoras no mundo que não queria o Nobel da Literatura. José Soares não suportava a perda de tempo com honrarias vãs e ilusórias. Preferia percorrer o caminho árduo, longo e vário que leva ao calor dos amigos.

Querem saber uma coisa? Os amigos sabem mais de nós do que pensamos e fazem-nos sentir importantes. Mas nunca o dizem. Porque entre amigos não há dívidas e todas as contas estão saldadas. O preço da amizade é o de ser generosamente gratuita. Julgo que o José Soares foi, no plano simbólico, uma espécie de Natal e de Páscoa juntos: continha a força melancólica e enérgica de nos fazer nascer e aliava-a à nossa transformação, à nossa passagem para uma dimensão apenas explicável por quem o conheceu. E mesmo assim não a consigo explicar.

Ele era daqueles que, apesar de terem passado a vida a tentar apanhar-lhe o sentido, amavam a vida mais do que o seu sentido. Que sorte tive.

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Associação de Artistas da Nazaré
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