Situações incómodas em português

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A língua portuguesa não é, deixou de o ser há séculos, propriedade exclusiva dos Portugueses. Donos dela (compartes, sem privilégio) são todos os povos que a falam e a têm como veículo primeiro de comunicação e trabalho. Certo que a língua portuguesa, assim como, excepção feita ao Basco, cada uma das línguas espanholas - Castelhano, Catalão (Català), Galego (também chamado "Português da Galiza"), Valenciano (Valencià) - nasceu do processo colonial histórico da romanização da Península Ibérica: o Império difundiu, impondo a sua língua, que, com o decorrer dos séculos, se tornou este nosso, em boa verdade, dialecto latino. O mesmo aconteceu, com notáveis excepções, pelos mundos que Roma foi dominando.

À falta de discussão adequada e permanente, entrou-se por vezes em compromissos contrários à justeza disciplinar do Português. Temos imensos vocábulos que mantêm os vestígios das suas origens, mas, no Brasil, porque esses vestígios deixaram de ter expressão na fala, foram eliminados da escrita, sem mais explicação. Esqueceu-se o efeito dialéctico do binómio inseparável de fala e escrita (a escrita é sempre convencional, produto que é da actividade viva social da humanidade, ao passo que a fala é uma função natural, fisiológica e psicológica, do ser humano). Da fala se passou à escrita, mas, a partir daí, a escrita ganhou estatuto de guia da linguagem. Uma palavra escrita deveria ter uma única leitura para todos os segmentos geográficos da língua (apesar dos mais de 80.000 signos da língua chinesa, nem aí é possível essa compatibilização. É uma impossibilidade natural). Mas, pelo menos, não podendo corresponder estritamente à fonética particular dos grupos, deveriam manter-se na escrita, enquanto adequado, as suas características genéticas. Será talvez o modo mais genuíno de legar ao futuro os valores do passado histórico do idioma. Para que os modismos e as arbitrariedades a não deteriorem. Aí, estou com Platão e os deuses: "Esta ciência (a escrita), meu rei - diz o deus Theuth ao rei Thamus -, tornará os Egípcios mais sábios e enriquecerá a sua memória, porque esta descoberta é remédio para a sabedoria e a memória."

Dêmos um exemplo, entre milhares: facto e fato. Desde há muito que, entre o nosso país e o grande país irmão, se aceitou, pacificamente, que cada uma das formas pertence à norma de cada país. Ou isso se estabeleceu arbitrária e abusivamente. O Acordo Ortográfico de 1990 não questiona esse entendimento, admitindo universalmente as duas formas. É evidente que se trata de uma concessão não fundamentada. Temos assim duas normas nacionais, divergentes, do Português, o que me parece uma inconveniência dispensável. É minha opinião que, no Brasil, como em toda a comunidade de língua portuguesa, deveria continuar a escrever-se facto, ainda que a fala não pronunciasse o c e o brasileiro continuasse a dizer terno e não fato. Como nós também, aqui, o não pronunciamos em carácter, agora definitivamente banido, por exemplo. Não há Português e Brasileiro (língua portuguesa e língua brasileira), há só Português, em Portugal, no Brasil, em Cabo Verde, etc. Normas regionais, sim. Até as há sub-regionais - em Portugal, no Brasil, em Cabo Verde...

As especificidades da língua, e muitíssimas outras mais, parece que deveriam estar permanentemente acauteladas em observatórios específicos, suportados responsavelmente por profissionais dedicados e reconhecidos, e vigiadas pelos bons cultores da escrita literária e artística. Sem esquecer que somos sete os países do Português. É preciso deixar a língua fluir, respirar, experimentar, ousar, adaptar-se sem se trair, onde quer que ela aconteça. Mas o que parece é que, quando se intervém, não há tanto de ciência como de pragmática.

É evidente que a complexidade política da era global impõe a intervenção não apenas dos guardiões da pureza da escrita (da língua, afinal), mas, em última instância, das próprias superstruturas dos Estados (neste caso, dos PALOP), por explícito ou tácito imperativo constitucional, para tornar legal e obrigatória a sua aplicação escolar e profissional. Aqui, as dificuldades burocráticas e os sopros das capelinhas comparecem para ajudar e atrapalhar. É então preciso discutir, avançar, retroceder, avançar de novo e obter um consenso feito de arte e bom senso. Eu faço ideia das dores de cabeça que tamanhas diligências causam! A unificação de uma língua, espalhada pelas sete partidas do Mundo, é obra. Lembre-se a preocupação de Gonçalves Viana, por altura do Acordo de 1911, ao afirmar que "as grafias inglesa e francesa não eram, nem são, modelo de perfeição, antes pelo contrário, tinham, apesar disso, a grande vantagem de se encontrarem unificadas, enquanto a nossa era positivamente anárquica." O que não é o caso, actualmente.

Neste Acordo Ortográfico, dito de 1990, aparecem normas e directivas que, por uma certa racionalidade conservadora, contesto. A razia que faz às letras que se não dizem ou lêem e o concomitante apagamento de alguns diacríticos produzem em mim um certo desconforto. É o caso de vocábulos até aqui terminados em -ecto, como directo, recto, tecto, etc., que agora se escrevem direto, reto, teto, etc. Ora, não conhecendo eu as novas regras ortográficas (e mesmo conhecendo-as), posso muito bem (ou muito mal) ler e dizer dirêto, rêto, têto, etc., que é assim que, predominantemente, se lêem ou dizem as palavras em -eto, como folheto, amuleto, esqueleto, etc. É que não foi revogado, nem por fundamentação pertinente da Academia nem muito menos pelo costume, a regra implícita tradicional e etimologicamente correcta do valor fonético daquela consoante c, que faz(ia) abrir a vogal precedente. Mas penso que são incontáveis as razões de reparo que o Acordo oferece. Ou será que passa a ser indiferente qualquer modo de acentuar a tónica como muito bem nos apetecer? Não poderá esta língua aceitar como necessário um paradigma fonético, confirmado na escrita, sem constrangimento dos falares regionais e transnacionais? Penso que sim.

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