De Solferino a Gaza, recordando o primeiro prémio Nobel da Paz

Homenagem a Henry Dunant, fundador do movimento internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.

O Dia das Nações Unidas – 24 de Outubro –​ foi este ano assinalado tendo como pano de fundo um desanimador e muito preocupante cenário de desconstrução dos princípios e regras de boa convivência entre as nações tão arduamente erigidos por obra de algumas notáveis personalidades da história mundial, que encontraram nos escombros de grandes tragédias provocadas por mão humana inspiração para estabelecer normas visando impedir ou limitar a sua repetição.

Essas personalidades que estiveram na origem de extraordinários avanços civilizacionais, atribuindo valor à vida e dignidade de todo o ser humano, parecem ter caído no esquecimento e a sua obra começa também a ser revertida, por incumprimento ou mesmo por decisão formal.

A filosofia de que os fins justificam os meios parece querer instalar-se, validando ações e métodos excluídos pelo direito internacional, precisamente com base no princípio de que para tudo tem de haver regras, mesmo para a guerra, porque existem valores superiores a qualquer interesse e que são inalienáveis – os direitos humanos. Ou seja por serem inerentes à dignidade da pessoa humana não podem ser disputados.

Recordando Henry Dunant

As imagens que nos chegam todos os dias, primeiro da Ucrânia, depois de Gaza, sem esquecer as atrocidades cometidas pelo Hamas em Israel a 7 de Outubro, são chocantes pela violência mas também pelo retrocesso civilizacional que representam, que é essencialmente o regresso da referida filosofia de que os fins justificam os meios e de que na guerra não há regras.

Foi contra essa filosofia que intercedeu Henry Dunant, cidadão suíço que, em 1859, ao viajar de carruagem pelo campo (repare-se que se trata de época anterior ao automóvel e às autoestradas), se deparou com uma batalha campal real entre as tropas francesas de Napoleão III e sardo-piemontesas de Vítor Emanuel II, de um lado, e o exército austríaco Francisco José, do outro. Não havia, à época, como hoje, imagens reais e em directo dos teatros de operação em tempo de guerra, pelo que o conhecimento do que por lá se passava ficava sobretudo com os protagonistas e com aqueles a quem os que tinham a sorte de regressar contavam o que haviam passado.

Chocado com o cenário que encontrou de corpos estendidos no chão, não se distinguindo mortos de feridos, sem assistência, Henry Dunant não conseguiu esquecer aquelas visões e, regressado a casa, escreveu um livro para memória futura, intitulado Memória de Solferino (Itália). Mas não ficou por aí, tendo abordado as autoridades para propor a criação de estruturas permanentes primeiro de assistência aos militares feridos na guerra e depois de proteção dos civis em zonas de conflito. A sua iniciativa teve dois resultados:

  • A criação do movimento internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, entidade independente que presta assistência humanitária em situações de conflitos armados e emergências;
  • A adoção das Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais, que definem regras para a atuação dos beligerantes em situação de conflito armado, impondo limites a comportamentos, meios e métodos das partes – o chamado Direito Internacional Humanitário ou Direito da Guerra que se foi alargando para incluir a interdição do uso de certo tipo de armamento que produz um efeito superior ao estritamente necessário em sofrimento físico e destruição;
  • Este ramo do direito internacional não discute a existência/legalidade dos conflitos armados – a Carta das Nações Unidas é que o faz. Visa apenas – e não é pouco – minimizar os seus efeitos quando existam, salvaguardando em particular a proteção dos militares em combate feridos ou doentes, dos náufragos, dos que são feitos prisioneiros de guerra e dos civis.

Pela sua ação humanista, Henry Dunant foi, juntamente com o francês Frédéric Passy, o primeiro laureado de sempre com o prémio Nobel da Paz, em 1901.

Hoje, em 2023, temos automóveis, autoestradas, aviões, foguetões… e temos imagens em directo ou quase das atrocidades cometidas pelo Hamas em Israel e de cadáveres de crianças palestinianas a serem retirados de escombros de edifícios de Gaza atacados por este país. Nenhuma vítima de atrocidades é mais aceitável que a outra, pois reza a Declaração Universal dos Direitos Humanos “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros, com espírito de fraternidade”.

Em defesa de um regresso ao humanismo de todas as partes, recorda-se o exemplo de Henry Dunant.

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