Do Chile veio uma lição (ou várias?)

A flutuação do eleitorado neste processo constitucional mostra que os identitarismos não transportam as soluções de estabilização desejadas. E que a polarização dá votos, mas não fideliza eleitores.

Quatro anos depois, o Chile fechou um processo constitucional longo e fraturante, com um resultado inglório. A expressiva maioria (78% dos votantes) que em 2019 votou pela elaboração de uma nova Constituição, destinada a substituir o texto constitucional vigente (gerado em 1980 sob a governação autoritária da Junta Militar, liderada pelo general Pinochet) não logrou ver adotado um novo estatuto constitucional. Consultados sobre duas propostas de Constituição, muito distintas no seu conteúdo, defendidas por diferentes forças políticas em atitude confrontacional, os chilenos rejeitaram ambas. Em setembro de 2022, 61,9% do eleitorado opôs-se a uma proposta de constituição que contou com o apoio do oficialismo. No último domingo, 55% dos eleitores repudiaram outra proposta, que desta vez, transportava a marca da direita radical, introduzida pelo Partido Republicano. Das quatro votações que o processo constitucional exigiu, a último foi a mais renhida. Venceu o “não” à proposta constitucional, por uma diferença de 11 pontos percentuais, mas não há vencedores no Chile.

Segundo as primeiras análises aos resultados, terá sido o voto dos emigrantes, das mulheres e dos jovens a determinar a última votação. Em comum, estes segmentos parecem ter o repúdio por soluções económicas consideradas excessivamente liberais (tendo a exigência contrária: mais Estado social), pela contração de direitos adquiridos (a perceção de que ficaria em risco a interrupção voluntária da gravidez, já reconhecida na lei) e outros por valores conservadores (que, segundo muitos, sancionariam regressões nos direitos das mulheres e facilitariam discriminações a pessoas LGBTQ+).

Embora estes elementos tenham poder explicativo, são insuficientes para justificar por que razão se desfez a tendência de voto que vinha beneficiando o campo das direitas e que ficara expressa nas eleições de 2021 para o Senado, no plebiscito constitucional de 2022 e nas eleições para o Conselho Constitucional. O rompimento desse alinhamento parece ser uma consequência da fragmentação das posições que Chile Vamos, Partido Democrata ou União Democrata Independente assumiram perante a proposta de Constituição que foi plebiscitada no último domingo. A ambição identitária do Partido Republicano acerca daquele texto pesou negativamente sobre os restantes partidos do mesmo campo do espectro partidário. Impediu a unidade em torno da proposta e, como tal, não se registou a sua defesa plural, pelas vozes das várias direitas. Não foi uma decisão de última hora. Lideranças da UDI, por exemplo, passaram largos meses denunciado excessos das propostas republicanas e defendendo outras soluções para os conteúdos constitucionais.

O mais curioso é que o Partido Republicano, ao querer deixar a sua marca na proposta constitucional, cometeu o mesmo erro que as forças de esquerda na primeira fase do processo constitucional, quando a Convenção optou pela apresentação de uma constituição refundacional. Nos dois casos, as propostas constitucionais serviram como catalisadores de projetos profundamente identitários, alienados da procura de consensos. De forma surpreendente, o Partido Republicano ignorou os erros cometidos pela Convenção, reconhecidos depois pelo oficialismo e até pelo presidente Gabriel Boric.

Depois das derrotas sofridas em setembro de 2022 e em maio de 2023, Boric apelou à necessidade de serem feitos acordos entre os partidos com assento no Conselho Constitucional. Pela posterior sucessão de acontecimentos, parece que o Partido Republicano terá visto nesse apelo uma tentativa de condicionamento da sua agenda e resistiu a procurar entendimentos. Acresce que o empenhamento republicano na criação de uma nova Constituição abriu fissuras no próprio partido que não foram superadas até à votação de domingo. O trânsito do líder, José Antonio Kast, que foi da obstinada preservação da Constituição de 1980 até ao entusiasmo manifesto pela apresentação de um novo texto, não foi acompanhado por todos os seus correligionários. Para muitos republicanos, a nova posição do partido colidiu com a estratégia preferencial de combate à governação de Boric e de construção de políticas alternativas às implementadas. Num curto espaço de tempo, entre julho e novembro, houve dissensões no interior do Partido Republicano, com saídas de militantes. É possível que parte do eleitorado republicano tenha votado pelo “não”.

Ao contrário do que uma leitura apressada destes quatro anos pode sugerir, esboçou-se uma via possível para dotar o país de uma nova Constituição. Essa possibilidade passou pelo projeto de proposta que o Conselho Constitucional recebeu de 24 especialistas jurídicos, que acomodou princípios consensualizados entre todo o espetro político. Mas o design institucional da segunda fase do processo constitucional, ao obrigar à edição desse projeto pelos conselheiros constitucionais, diluiu aquele esforço, a partir do momento em que a maioria daqueles partidarizou o texto e evitou negociações. Se todos os partidos apreciaram aquele projeto e se se sabia que os chilenos esperavam moderação e acordos, a questão que sobra por resolver é: por que razão a procura de consensos passou a ser desvalorizada pelas forças políticas? A flutuação do eleitorado, no caso deste processo constitucional, mostra que os identitarismos não transportam as soluções de estabilização desejadas. Mostra também que a polarização dá votos, mas não fideliza eleitorados. Urge compreender esta lição.

Embora os resultados tenham sido recebidos por todas as fações políticas com sentido institucional e sem indução de maior confrontação política, o caminho a fazer, daqui em diante, não é evidente. As forças políticas, à esquerda e à direita, sobretudo nos extremos, sabem que perderam a confiança do eleitorado, quando, obstinadamente, falharam o processo constitucional, trocando o consenso por projetos minoritários. O custo económico da totalidade do processo constitucional, estimado em 157 milhões de euros, também não é fácil de acomodar, a poucos meses da realização de eleições locais. Num país em que a questão constitucional tem estado omnipresente em todas as legislaturas, desde 1990, servindo em grande medida para desviar atenções do fracasso/esgotamento de opções legislativas e alimentar agendas de setores radicalizados, está criado o desafio de se saber quando se tornará oportuno voltar a defender mudanças constitucionais. Para já, impõe-se ressignificar a relação com a Constituição vigente.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 3 comentários