Ayahuasca: “As pessoas procuram outras formas de estar na vida”

As chamadas “religiões ayahuasqueiras” são, diz a antropóloga Clara Saraiva, uma resposta para quem anda à procura da “reconexão com a natureza”.

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A antropóloga Clara Saraiva considera que estas religiões respondem à vontade de "reconexão com a natureza" Rui Gaudêncio
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As religiões ayahuasqueiras, criadas no século XX, no Brasil, e presentes há décadas em Portugal, têm vindo a atrair “pessoas de classes sociais, estratos económicos e níveis educacionais mais elevados, por serem originárias de locais como a Amazónia”, diz a antropóloga Clara Saraiva, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Esta especialista em religiões nota que elas são “uma reacção contra o estereótipo da vida ocidental” e uma resposta a quem anda à procura da “reconexão com a natureza”.

As religiões ayahuasqueiras como o Santo Daime ou a União do Vegetal (UDV) foram fundadas por negros e descendentes de escravos, mas diferem de outras correntes brasileiras por terem nascido na Amazónia?
A maior parte das religiões ayahuasqueiras e afro-brasileiras é indissociável da relação entre negritude e ameríndios. As comunidades quilombolas têm origem nas comunidades escravas, mas os escravos misturaram-se, entretanto, com os ameríndios. Ao contrário das religiões ayahuasqueiras, as afro-brasileiras têm uma forte componente africana, trazida de diferentes religiões, por diferentes grupos de escravos, e de diferentes partes de África. A componente principal nas religiões ayahuasqueiras é ameríndia, nas quais a ayahuasca e outras plantas servem não apenas para promover as viagens xamânicas, mas também como factor de comunhão entre praticantes. Todas estas substâncias eram utilizadas pelos autóctones de todas as Américas para contactar o sobrenatural. É compreensível que esse uso tenha continuado e que tenha tomado contornos que os europeus acham interessantes.

A diáspora religiosa brasileira tem várias facetas. Estas religiões chegaram com a imigração ou são consequência de um projecto expansionista?
O Brasil sempre teve uma diversidade religiosa enorme. Estas religiões ayahuasqueiras são fruto da imigração brasileira — por razões óbvias, Portugal é o porto de entrada de muitas religiões que vêm do Brasil —, mas elas são muito diferentes das religiões afro-brasileiras. A base é muito posta na ayahuasca, que permite a tal ascensão pessoal e uma introspecção mais aprofundada, graças a substâncias psicotrópicas, como lhe chama o senso comum. Estas religiões ayahuasqueiras têm, realmente, uma relação directa com a Amazónia e com práticas ameríndias originais. O projecto expansionista é dos evangélicos, que são mais organizados e estruturados.

Qual é a razão desse interesse na Europa pelos rituais xamânicos amazónicos?
Estas religiões atraem pessoas de classes sociais, estratos económicos e níveis educacionais mais elevados, por serem originárias de locais como a Amazónia, nos quais as comunidades têm, supostamente, uma relação muito forte com a natureza e onde tudo é pensado em torno do planeta Terra. As pessoas procuram outras formas de estar na vida e o uso da ayahuasca ajuda-as a sair do mundo em que vivem, que é um mundo neoliberal, capitalista e sem ligação com a natureza e com a terra. E são, justamente, estas evasões através de religiões que não são autóctones da Europa, e que são suficientemente exóticas para atrair as pessoas, que respondem à procura da reconexão com a natureza.

É um sintoma de desconfiança no modo de vida ocidental?
É uma reacção contra o estereótipo da vida ocidental. Essas substâncias são encaradas como uma forma de libertação, de entrada num estado de consciência alternativa, no qual as pessoas conseguem sentir o seu verdadeiro eu, o que não se consegue no dia-a-dia de trabalho. As gerações de pessoas com 30, 40 anos querem estas experiências esotéricas e diferentes. E se há algo que é diferente é o que vem da Amazónia e dessa reconexão com a mãe natureza. Todas estas correntes espirituais ou religiosas caem, de certa forma, dentro do grande chapéu da new age (nova era). Há um trânsito religioso entre elas. As palavras de ordem são: circulação religiosa, multiplicidade religiosa e de experiências.

Elas têm em comum a introspecção e o autoconhecimento. Mas têm também uma mensagem de esperança?
Claro que sim. Como elas se prendem com a relação com a mãe natureza, que os humanos estão a destruir, uma linha espiritual e religiosa mais próxima da natureza é uma forma de deixarmos este modo de vida que temos e de escolhermos uma vida mais simples. Há uma esperança de melhoria em termos ecológicos.

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