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Onde reside a responsabilidade da indústria farmacêutica, cujos lucros astronómicos são incapazes de cobrir as despesas de fármacos para doenças raras? Quem nos desvia a atenção da raiz do problema?

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Tudo serve para desviar atenções. De súbito, e ainda antes do tempo para nomear o novo primeiro-ministro, o Presidente da República surge sob os holofotes da suspeita, acusado, no que carece de prova, de influenciar o tratamento de favor de duas crianças, pela obtenção de um medicamento conhecido como o mais caro do mundo. Na posição que ocupa o visado, o favorecimento de cidadãos é inaceitável, dado pôr em causa o dever de imparcialidade do mais alto magistrado da nação.

Por outro lado, favorecer duas crianças cuja vida depende de um medicamento, facultando-lhes uma terapia que atenua a progressão de uma doença rara e incapacitante não parece constituir-se um aspecto digno de censura moral por aí além. Para sermos sinceros, não fossem todos os casos até agora não explicados, que são muitos – emails, distanciamento de pai (Marcelo) e filho (Nuno), administração do fármaco antes ainda de as crianças serem detentoras de número de utente do SNS, outras e quaisquer irregularidades –, poder-se-ia cotejar o caso com o de uma amnistia papal, de arbitrária discriminação positiva. Isso é mau? As crianças chamam-se Maitê e Lorena, e são luso-brasileiras – faz isso alguma diferença? Quer dizer, o facto de serem crianças e não poderem esperar produz ainda alguma diferença? Sabemos, além disso, que a mãe das crianças não é uma mulher pobre ou de classe baixa, inábil para o exercício de influência que lhe permita chegar à presidência de um Estado, mas isso – pertencer a uma classe média-elevada e ser expedita – faz também a diferença?

Não é, dir-se-á, pressuposto que o Presidente da República atenda a pedidos a si dirigidos. Não: o Presidente não é a nossa mãe, a Virgem Maria ou o Pai Natal. E pode não nos merecer, por razões várias, entre as quais a ideológica, o nosso mais evidente respeito e estima. Mas a quem se recorre, depois de todas as instâncias, nos casos de natureza especial e em casos de manifesto desespero, estarem esgotadas?

Finalmente, perguntamo-nos: a aflição da mãe das crianças, o contacto com o filho do Presidente, o embaraço em Belém, tudo isso não seria evitável, se o medicamento mais caro do mundo fosse um fármaco acessível? Onde reside afinal a responsabilidade da indústria farmacêutica, cujos lucros astronómicos são incapazes de cobrir as despesas de fármacos indicados no tratamento de doenças raras? Quem nos desvia a atenção da verdadeira raiz do problema e nos reserva o bilhete para o mais medíocre espectáculo da politiquice nacional?

Para sermos curtos e grossos, por que diabo não é discutido o preço pornográfico deste tipo de medicamentos, afectado ao velho sistema capitalista global? Não será o Bem da Humanidade um princípio suficientemente convincente para submeter a indústria farmacêutica a regras do direito internacional?

A não ser que se prefira casos de corredores palacianos.

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