Radicais e moderados no PS

Foi muito importante que António Costa tivesse alargado o campo dos entendimentos possíveis, derrubando os muros à esquerda. Mas derrubar muros não é saltar para o outro lado.

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Há muito que fiz minha a divisa da sociedade fabiana, a mãe do trabalhismo inglês: radical nos objetivos, moderado no caminho. Minha e do meu entendimento do que deve ser o Partido Socialista.

1. Radical nos objetivos significa ter e atualizar em permanência um programa orientado, com clareza, sem ambiguidades, pelas melhores combinações entre igualitarismo e liberdade, entre universalismo e pluralismo, entre progresso e sustentabilidade, ou entre cosmopolitismo e patriotismo (mas não nacionalismo). E sempre, sem hesitações, pela defesa da paz contra o regime da força, da guerra, nas relações internacionais.

2. Moderado nos processos significa ter propostas e práticas de governo incrementais, de concretização sucessiva dos objetivos, com mudança das instituições mas sem destruição institucional. Incremental, porém, não é o mesmo que ziguezague, não é o mesmo que passar o tempo a dar um passo certo para trás com a intenção, incerta, e quantas vezes frustrada, de dar depois dois passos à frente. Incremental não é, também, repor simplesmente o caminho no ponto em que se estava quando os nossos adversários o interromperam e o fizeram regredir. E, no outro polo do debate, não é, de certeza, nunca, definir uma via para atingir um objetivo que é a inversão radical desse mesmo objetivo: como quando se pretende combater o racismo institucionalizando as classificações raciais, ou, para um exemplo histórico de má memória, instaurar uma ditadura do proletariado para chegar a uma democracia mais avançada.

3. O PS é de esquerda, mas não é, só, um partido de esquerda. A radicalidade de todos e cada um dos seus objetivos não permite a prioridade radical de apenas um deles. Se há hoje modo de classificação que empobrece o debate político e esconde mais do que o que revela, é aquele que entende ser possível integrar o pluralismo das diferenças políticas e ideológicas numa única oposição. Não precisamos de ir para além da esquerda e da direita no sentido de transcender esta dicotomia fundamental. Mas é necessário ir para além da dicotomia no sentido em que precisamos de mais eixos de classificação que não se sobrepõem ao posicionamento esquerda/direita. Este posicionamento opõe sobretudo igualitarismo a elitismo, mas não, necessariamente, liberdade a despotismo. Ou progressistas a conservadores, universalistas a tribalistas identitários, cosmopolitas a nacionalistas. Há, por exemplo, esquerdas pouco liberais e bastantes conservadoras e direitas progressistas e liberais (palavra que não é um insulto).

4. O campo da social-democracia, em Portugal designado como o campo do socialismo democrático, é o que consegue fazer a síntese mais desejável dos múltiplos posicionamentos, por exemplo, a síntese primordial entre igualitarismo e liberdade (um problema com mais de 100 anos) ou entre progresso e sustentabilidade (um problema com, pelo menos, 40 anos). A social-democracia é uma síntese instável, com tensões, a necessitar sempre de ser ajustada em função das mudanças sociais que acontecem em permanência no mundo contemporâneo, um mundo que só se reproduz mudando. É esse o campo do PS, um campo que não partilha integralmente com qualquer outro partido.

5. E é, por isso, que o PS deve ter um posicionamento autónomo no campo político, em particular no campo parlamentar. Bem como políticas de alianças abertas, definidas conjunturalmente em função das configurações mutáveis no plano político-partidário e, sobretudo, em função dos problemas que em cada momento define como prioritários. Foi por isso muito importante que António Costa tivesse alargado o campo dos entendimentos partidários possíveis, derrubando os muros à esquerda do PS. Mas derrubar muros à esquerda não é o mesmo que saltar para o outro lado desses muros.

6. É com estas considerações em mente que votarei nas próximas eleições diretas para secretário-geral do PS. Sabendo que nenhum dos candidatos partilha integralmente estas ideias, mas que há quem esteja mais perto delas e quem esteja mais longe. Radical nos objetivos, mas moderado no caminho, escolherei quem estiver mais perto desta divisa. E, por isso, também, quem defender que o PS deve ter um posicionamento autónomo no campo político que lhe permita fazer todas as alianças que em cada momento forem necessárias.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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