Guerra Junqueiro, um centenário

Volvido um século sobre a morte do poeta, dir-se-ia ser tempo e distância bastantes para se proceder a uma leitura mais serena e ajustada.

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Antes e acima de tudo Guerra Junqueiro foi poeta 0151 “todo un poeta, nada menos que todo un poeta […], creador de poemas y creador de alma”, na expressão de Unamuno. Mas foi cumulativamente político e diplomata, pensador, colecionador de arte, homem de ciência, lavrador e viticultor. Junqueiro deixou um legado inspirador, uma geografia multiforme, capaz de acender uma “curiosidade estudiosa” de marca interdisciplinar.

Volvido um século sobre a morte do poeta — nascido em Freixo de Espada a Cinta, a 15 de setembro de 1850, e falecido em Lisboa, a 7 de julho de 1923 —, dir-se-ia ser tempo e distância bastantes para se proceder a uma leitura mais serena e ajustada. Todavia, instaurar posições de equilíbrio no estudo da obra e seu autor, há décadas singularizado como nome de Guerra, é ainda tudo menos fácil. Nele, como escreveu José Augusto Seabra, se “cristalizaram certas obsessões geracionais de sinal vário, alimentando falsas querelas, de que se aproveitaram as ortodoxias e os poderes em confronto, que as utilizaram como um meio de congelar as leituras e interpretações das respetivas obras e ações, muitas vezes numa conivência recíproca”.

A crítica desenvolvida em torno do poeta raramente é da ordem da prova. Extremada entre a apoteose e o repúdio, poucas vezes é verdadeira e raramente é honesta. Parte substancial do que muitos sustentaram por escrito, de forma aparentemente especializada e isenta, tem por base a superficialidade e a coerção de questiúnculas políticas e religiosas. Julgamentos circunstanciais, aparentemente efémeros e simplistas, deitaram, não raro, raízes na posteridade. Esquecido o contexto em que emergiram, atribuiu-se-lhes valor de dado adquirido ou irrefutável. Também por via disso, Guerra Junqueiro foi sendo erodido quase até ao esquecimento.

São infatigáveis os ódios velhos. Contudo, se houve tempo em que a questão era de reativo ajuste de contas, de matriz religiosa ou política, dir-se-ia que hoje não, nem sequer má-fé, apenas ignorância no que concerne ao autor de A Velhice do Padre Eterno e de Pátria, aliás, figura bem “mais complexa do que na atual visão do nosso passado poético dos últimos cem anos se diz”, como afirmou Eduardo Lourenço, na entrevista para o documentário “Nome de Guerra, a Viagem de Junqueiro”.

Julgava e, valha a verdade, assim julgo ainda, que Guerra Junqueiro tem hoje um rosto mais limpo, mais genuíno, mais contemporâneo, mais dele, livre de embaraços religiosos e políticos. Mas há ideias que parecem ficar suspensas, pairando sobre o fluir do tempo. Ouvi há dias certa conferência com moldura pretensamente académica sobre o poeta. Resisti até ao fim, sem manifestar qualquer protesto mesmo em termos moderados.

Por “adanismo” os nossos vizinhos espanhóis traduzem as “originalidades” de quem, ignorando o trabalho de outros, e omitindo as fontes, se arvora em descobridor. Também por cá, da política às universidades, se pratica o adanismo. Não será daí que virá mal ao mundo. Em todo o caso, ufanar-se da descoberta da América ou da pólvora é quase sempre expor-se ao ridículo. Que a memória não nos desampare.

Pela proximidade, esta crónica deveria ter talvez ares natalícios; sempre direi que, tal como o mistério da incarnação cristã, também a memória convoca um corpo, “um contexto sensível onde dizer-se”. E quanto ao poeta de Os Simples, mais do que tempo de falar dele, será ocasião para lhe devolver a voz, publicando-lhe a obra condignamente.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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