Aeroporto e privatização da ANA: a pesada herança da direita

Com a privatização, feita pela direita, da ANA – Aeroportos de Portugal, a empresa agora detida pela francesa Vinci tem o poder, efetivo, de decidir a localização do novo aeroporto.

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Cinquenta e quatro anos de estudos depois, chegou a hora de decidir a localização do novo aeroporto de Lisboa. O aeroporto Humberto Delgado totalmente saturado leva o país a perder 3 milhões de euros por dia, segundo a Confederação de Turismo de Portugal. Os estudos efetuados nos últimos 15 anos apontam todos para a solução Alcochete: foi assim em 2007, foi agora com o novo relatório da Comissão Técnica Independente (CTI) e foi inclusive essa a conclusão a que chegou o Ministério das Infraestruturas e da Habitação em junho de 2022. No entanto, a venda da ANA – Aeroportos de Portugal à francesa Vinci entregou, efetivamente, o poder de decisão a uma empresa estrangeira. Esse é o grande obstáculo que está a condicionar as políticas públicas neste caso, como tentarei explicar.

Uma máquina de fazer dinheiro

O relatório económico da CTI, coordenado por Fernando Alexandre (ex-secretário de Estado Adjunto da Administração Interna do PSD no Governo da troika), demonstra que os lucros da ANA dispararam uns estratosféricos 2635,5% desde a privatização. Tal deve-se ao contrato de concessão que garante que quanto mais sobe a procura, mais sobem as taxas. Desde a privatização “verificou-se um crescimento muito acentuado dos níveis de procura que, conjuntamente com a aplicação do modelo de regulação económica definido, permitiu um desempenho económico-financeiro muito expressivo”, lê-se no relatório. Por isso é que Lisboa “constitui um caso único de crescimento da receita” a nível europeu. Não satisfeita, a Vinci quer, para o próximo ano, subir em 18% as taxas de Lisboa. Basicamente, a Vinci está sentada em cima de uma máquina de fazer dinheiro.

Investir o menos possível

Como o statu quo é extraordinariamente favorável à Vinci, a empresa francesa quer investir o menos possível. É importante perceber o contexto histórico: em 2013, quando comprou a ANA – Aeroportos de Portugal, a Vinci geria "meia dúzia" de aeroportos no Camboja. A ANA permitiu-lhe garantir conhecimento de ponta (que o Estado perdeu para o privado, ficando deste dependente) e uma renda financeira (lucros de €1,4 mil milhões em 10 anos) que financiou o crescimento internacional da Vinci. A empresa francesa utilizou os lucros da ANA para financiar a sua expansão para Reino Unido, Japão, Estados Unidos da América, Chile, Sérvia, Cabo Verde, entre outros países. Esta é a estratégia da Vinci: manter a renda em Portugal para investir lá fora.

Quando desempenhei funções de adjunto do senhor ministro das Infrasestruturas e da Habitação, estive presente em inúmeras reuniões com os responsáveis da ANA e pude testemunhar como é impressionante a resistência da empresa para efetuar investimentos tão baratos como comprar cadeiras para os passageiros esperarem. Não é por acaso que o último Conselho de Ministros do atual Governo aprovou, a 7 de dezembro, um diploma que obriga a ANA a fazer os investimentos aos quais está contratualmente obrigada – simplesmente porque os franceses querem gastar o mínimo possível em Portugal.

Privilégio sobre o novo aeroporto

A Vinci tem o direito de encetar um processo negocial exclusivo com o Estado, de propor uma localização e de procurar chegar a um acordo sobre a compensação financeira para avançar. Este processo pode demorar até cinco anos, de acordo com os prazos estabelecidos no contrato de concessão. No final deste período, se a ANA e o Estado não estiverem de acordo, este tem de indemnizar a empresa em mais de cinco mil milhões de euros. Isto é demonstrativo do poder que a direita deu a uma empresa estrangeira na definição da localização de uma infraestrutura tão crítica para o país. De facto, “estamos nas mãos da ANA” , como disse ao PÚBLICO a coordenadora da CTI.

Tendo em conta que a Vinci já disse, por diversas vezes, que não está de acordo com a solução Alcochete e que quer sim a localização no Montijo, não é preciso uma bola de cristal para adivinhar que tudo fará para atrasar a solução para este problema, opondo-se à solução estrutral Alcochete que exige mais investimento da empresa francesa , em detrimento de uma solução de curto prazo, Montijo, que lhe poupará vários milhares de milhões de euros. Isto porque quem financia o novo aeroporto é a Vinci, que depois vai recuperar o dinheiro através da cobrança de taxas aeroportuárias, sem a necessidade de nenhum investimento direto do Estado.

O Governo de direita, liderado por Passos Coelho, deu um poder desmesurado à Vinci fazendo o país seu refém. Uma pesada herança a prejudicar Portugal. Quanto mais tempo passa, mais a Vinci lucra sem investir; quanto mais tempo passa, mais o país perde com a não construção de um novo aeroporto. Este é um caso exemplar de como o interesse de uma empresa privada colide frontalmente com o interesse nacional.

Portugal precisa, assim, que o próximo governo tome uma posição pública determinada, nos antípodas da posição já assumida pelo PSD, que anunciou a criação de (mais um) grupo de trabalho para estudar o relatório feito pela CTI. O leitor concordará que não terá sido inocente a destacada presença que José Luís Arnaut, atual presidente da ANA - Aeroportos de Portugal, teve no último Congresso do PSD, no final do passado mês de novembro.

Esta é a história da tragédia das privatizações: invariavelmente tiram do país dinheiro, transferem conhecimento do Estado para privados externos e entregam a empresas estrangeiras capacidade para tomar decisões fundamentais para o nosso futuro coletivo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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