O que há de errado no acordo proposto na Cimeira do Clima?

A proposta de texto para o balanço global, um dos documentos mais esperados desta cimeira do clima, gerou um coro de queixas de vários países. Mas as reivindicações são diferentes.

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O presidente da COP28, Sultan Ahmed Al Jaber, pretendia encerrar esta terça-feira a cimeira, mas as negociações no Dubai ainda estão em curso EPA/MARTIN DIVISEK
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A falta de referência ao fim dos combustíveis fósseis não é o único problema da proposta da presidência da COP28 para o balanço global (global stocktake, ou GST), o primeiro balanço sobre o que foi feito desde o Acordo de Paris, que deveria conter metas e orientações sobre o que deve ser melhorado nas próximas "Contribuições Nacionalmente Determinadas" (NDC, na sigla em inglês), que serão apresentados daqui a dois anos, na COP30, que terá lugar no Brasil.

Reunimos alguns pontos que negociadores dos países e observadores da sociedade civil descrevem que precisam ser melhorados neste documento de contradições.

Máxima urgência, mínima ambição

O principal problema é que, em quase todos os pontos, o documento dá uma no cravo e outra na ferradura: refere os diagnósticos duros sobre o que é preciso fazer, mas não apresenta medidas vinculativas nem com um nível de clareza que responda efectivamente a esses alertas de urgência. "Um monumento de esquizofrenia", sintetizou Jean-Pascal van Ypersele, investigador da Universidade de Lovaina, que foi vice-presidente do IPCC durante a quinta ronda de avaliações científicas, que serviu de base para as decisões do Acordo de Paris (este ano, concluiu-se a sexta ronda de avaliações).

"Parece haver uma desconexão total entre o diagnóstico e o tratamento", escreveu o investigador na rede social X (antigo Twitter). "O diagnóstico é de um cancro potencialmente mortal, devido ao abuso de combustíveis fósseis. O tratamento prescrito é uma mistura de wishful thinking e magia", conclui, referindo-se às tecnologias de captura e armazenamento de carbono, ainda não comprovadas em escala, que são a aposta das indústrias fósseis para continuar a produzir.

Falta de financiamento

Para alguns países - e não apenas "petro-Estados" como a Arábia Saudita -, é um alívio não haver phase out, tendo em conta que o documento não refere nenhum caminho para financiar o enorme esforço que seria necessário para atingir esse objectivo. Na reunião à porta fechada que decorreu na segunda-feira à noite, o ministro boliviano da Planificação, Diego Pacheco Balanza, em representação do bloco de países que inclui a Índia e a China, afirmou que estas nações “não vêem espaço para visar [especificamente] qualquer fonte de energia”. “Qualquer eliminação, redução ou imposição de acções aos países é inaceitável para nós.” O site Politico, que teve acesso ao streaming da reunião fechada, ouviu também dois diplomatas de países africanos que afirmam que, para muitos países do seu continente, a ideia de uma eliminação dos combustíveis fósseis não é exequível.

"Alguns países em desenvolvimento consideram que o novo texto do balanço global da COP28 é razoável, mas por uma razão que de facto demonstra que o fracasso dos países desenvolvidos em assegurar o financiamento do clima está na base de quase todas as dificuldades que temos neste processo", resume Brandon Wu, director de políticas da organização Action Aid USA, numa publicação na rede social X (antigo Twitter). "A eliminação progressiva sem financiamento também conduz ao desastre climático, porque uma eliminação progressiva não é possível na maioria do mundo sem financiamento e tecnologia."

O papel dos países desenvolvidos

"Esta é uma visão que reflecte décadas de incumprimento das obrigações financeiras por parte dos países desenvolvidos, tentam eliminar completamente essas obrigações", alerta Wu, recordando a influência de países como os EUA nas negociações das diferentes vertentes na COP28, como o global stocktake, a adaptação ou transição justa. "Só os países desenvolvidos têm a capacidade de fornecer o ingrediente que falta para que todo este processo funcione. Não só não o estão a fazer, como estão a dar sinais de que nunca o querem fazer, ao diluir todos os novos textos que recordam as suas obrigações", denuncia o especialista da Action Aid. "Se tivermos de jogar o jogo da culpa, apontemos o dedo aos países desenvolvidos."

Outra das questões mais mencionadas ao longo desta COP28 foi a procura de uma solução para o facto de as dívidas soberanas terem um enorme impacto sobre os juros dos empréstimos, tornando quase inacessível o capital necessário para as mudanças estruturais de que a maioria dos países em desenvolvimento precisa.

Adaptação sem concretização

Também no que toca à adaptação, como se previa, o texto do balanço global não é suficientemente conclusivo. Há uma série de outros textos trabalhados nesta COP28 que se focam nessa matéria, como o Objectivo Global de Adaptação (Global Goal for Adaptation, GGA), mas a base que é lançada pelo GST é considerada muito frágil para conseguir rematar as pontas soltas dos outros documentos, faltando também indicações claras sobre os meios de concretização, em particular quais serão as ajudas financeiras que os países em desenvolvimento irão ter para se dedicar a estes novos compromissos.

Uma vez mais, esta versão do balanço global dá uma no cravo e outra na ferradura: as necessidades de adaptação são claramente reconhecidas (as necessidades estimadas são actualmente cerca de 10 a 18 vezes superiores aos actuais fluxos de financiamento), mas "o espaço reservado para os objectivos do GGA deveria incluir o pedido para que os países desenvolvidos prestem apoio aos países em desenvolvimento para haver algum progresso em direcção aos objectivos", explica Ana Mulio Alvarez, investigadora do think tank E3G. Nesta versão do GST, o texto deixa também de referir o pedido à Comissão Permanente de Finanças para que estabeleça um roteiro para duplicar o financiamento da adaptação.

Portugal nas negociações

Um dos temas queridos a Portugal é a questão dos oceanos, que ganha mais referências no texto do que é habitual mas ainda não de forma satisfatória. "Há várias referências relativamente aos oceanos no texto, mas parece-nos que são muito suaves, ou muito tímidas", explicou Duarte Cordeiro. "Vamos procurar ver se é possível melhorar as referências dos oceanos."

Também nas questões de adaptação, o contacto com países como o Brasil mostrou a relevância de encontrar equilíbrios. "Era muito importante a questão relativa à capacidade de diferenciação de alguns países que estão em desenvolvimento", explica o ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro. "Esses aspectos estão considerados, mas insistimos que se não tivermos a dimensão da ambição no texto, isto obviamente tem que ser visto como um conjunto, e desequilibra."

Portugal e a Alemanha foram os países representantes da delegação da UE nas negociações sobre o pilar da mitigação, tendo assim uma participação destacada nas negociações sobre questões de redução das emissões, aposta nas renováveis e avanços em matéria de eficiência energética.

O PÚBLICO viajou a convite da Fundação Oceano Azul

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