A procrastinação faz-nos lemingues

Cada nova vaga de optimismo deixa-me desconfortável. Já não me entusiasmo com declarações ou convenções pomposas. Consciente da infinidade de promessas por cumprir, encaro-as como propaganda.

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Vinda não sei de onde, a informação circulou quando o nosso grupo de estudantes começou a ler e a debater temas de Ambiente e Conservação da Natureza. Nessa altura acolhemos como verdadeiro o seu conteúdo. Mais tarde, li documentos fidedignos a desmontar o mito urbano. Dizia este que, quando há excesso de lemingues, pequenos mamíferos das regiões árcticas, o seu alimento escasseia. Nessas ocasiões, periodicamente, os famintos herbívoros, indo em grupos para falésias, caíam e morriam no mar, resultando em redução populacional e recuperação dos recursos alimentares.

É uma imagem atraente, mas falsa, sem estudo de suporte. Tomando os lemingues como exemplo, não faltaram opiniões com soluções para o grave problema da sobrepopulação humana. Mesmo que o mito se revelasse verdadeiro, nunca seria comparável às sociedades humanas, pois os roedores, apenas comendo, inconscientes dos seus efeitos, não podem ser acusados de destruir o meio em que vivem, ao contrário do que os humanos fazem.

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Um lemingue Lemmus lemmus em posição de ataque, com os dentes à mostra. Estes pequenos roedores atacam o predador, mesmo que sejam humanos Kari Eischer/GETTYIMAGES

Vem-me esta recordação, reiteradamente, a propósito de cada uma das notícias publicadas nos últimos anos sobre o Ambiente na Terra. Umas parecem boas, outras não. Só para referir algumas, lembro-me do novo acordo obtido na ONU para protecção dos oceanos (Tratado do Alto Mar), os anúncios de mais uma Área Protegida de grande dimensão, ou a recente proposta que visa restaurar 20% das terras e mares da UE até 2030 e 90% dos habitats degradados até 2050, e que desencadeou encarniçadas batalhas no Parlamento Europeu acerca dos seus efeitos económicos.

No lado das más notícias, há tantas que é difícil escolher. Menciono apenas algumas, como as contínuas referências a mais espécies extintas, ou sobre o declínio da biodiversidade, mesmo nas regiões onde há mais legislação para a proteger, o saque dos recursos marinhos à escala global, o estado de muitos rios europeus, poluídos acima dos limites legais, a desflorestação que prossegue, apesar de todos dizerem que a combatem, ou a proposta de redução dos pesticidas, visando um sistema alimentar mais saudável e sustentável, e recentemente rejeitada no Parlamento Europeu, vítima das manobras usadas pelas indústrias dominantes, falseando estudos, controlando notícias e influenciando políticos para atrasar e enfraquecer as mudanças.

Cada nova vaga de optimismo deixa-me desconfortável. Já não me entusiasmo com declarações pomposas, convenções muito celebradas ou anúncios grandiosos. Consciente da infinidade de promessas por cumprir, encaro-as como propaganda, como modo de sacudir os protestos dos movimentos sociais, ou simplesmente como procrastinação.

Não me refiro a documentos com princípios não quantificados, mas a acordos internacionais com metas definidas. Recordo-me de vários dos anteriores momentos de euforia. Lembram-se da Countdown 2010 Declaration? Foi uma iniciativa global para travar a perda de Biodiversidade até 2010, lançada em 2004 pela União Internacional para a Conservação da Natureza​ e pela Comissão Europeia. Com muitos detractores, as suas metas ficaram longe de serem atingidas. A Biodiversidade continuou a diminuir e foram assumidos novos compromissos para travar esta tendência, os Aichi Biodiversity Targets, adoptados em 2011. Também estes se revelaram uma miragem. Claro que a resposta foi fazer um novo compromisso, e estamos agora no Post-2020 Global Biodiversity Framework, cujos objectivos não serão alcançados, uma vez mais.

Outro exemplo foram os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM), estabelecidos após a Cimeira das Nações Unidas, em 2000. Continham metas para reduzir a pobreza, promover o desenvolvimento sustentável e melhorar a vida das pessoas em todo o mundo. Apesar dos progressos reais, os objectivos não foram alcançados. Assim, em seguida, forjaram os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), adoptados em 2015. Também conhecidos por Agenda 2030, são mais ambiciosos. Reiteradamente, a ONU tem vindo a apontar a falta de empenho dos países para cumprirem as metas dos ODS, pois todos os indicadores estão muito abaixo do acordado.

Não é difícil nomear outros exemplos de acordos ou de resoluções ainda mais vinculativas e ainda por concluir de forma satisfatória. A União Europeia comprometeu-se há muito a evitar a exploração predatória de madeiras tropicais, controlando a sua importação e venda, combatendo a corrupção, e ajudando a minimizar a exploração fraudulenta nos países de origem.

A Aplicação da Legislação, Governação e Comércio no Sector Florestal (FLEGT, na sigla em inglês), de 2003, surgiu com o objectivo muito amplo de reduzir a exploração madeireira ilegal, reforçando a gestão florestal legal e sustentável. Complementada por vários instrumentos jurídicos, reduziu alguns problemas, mas, no diagnóstico do ICNF, há “dificuldade na verificação da cadeia de produção/custódia, desde a mata até ao operador”, os “operadores não estão ainda completamente conscientes das suas obrigações”, há “dificuldade em conhecer a legislação...” Por essa Europa fora o panorama não é diferente, e, na avaliação da Comissão Europeia, “os objectivos gerais dos regulamentos ainda não foram plenamente alcançados”. Também o African Natural Resources Center diz que “a aplicação das leis e regulamentos florestais tende a ser deficiente, o sector informal permanece descontrolado, o sector florestal enfrenta uma influência política invasiva…” Em português simples, isto significa tráfico generalizado.

O falhanço geral provocou novo compromisso, o Regulamento Anti-Desflorestação da União Europeia 2023/1115. Mais abrangente que o anterior, fez-se para proibir a importação de bens ligados à desflorestação causada pela exploração de madeiras e expansão agrícola. A partir de 2024, a UE exige que as empresas certifiquem que os seus produtos não prejudicaram as florestas após 31 de Dezembro de 2020. Isto irá afectar a importação de carne, soja, óleo de palma, café, cacau, borracha, carvão vegetal e papel. O problema que se antecipa é uma fiscalização ainda mais complexa e com mais burocracia, o que significa mais corrupção…

Um último exemplo, para não maçar o leitor, é o caso das pescas. Frequentemente, somos alertados por notícias sobre a rapinagem que a frota chinesa perpetra. E com razão, pois esta exploração é insustentável e sem ética, mas eles estão a fazer o que os europeus fizeram descaradamente na segunda metade do século XX, e que continuam a fazer, escondidos em empresas de conveniência de países pobres. Os europeus ainda não conseguiram explorar todos os seus recursos pesqueiros de forma sustentável, apesar de ser essa a meta da Política Comum de Pescas, e que deveria ter sido atingida até 2020… Há ainda mananciais explorados no Atlântico acima da respectiva capacidade de renovação, e no Mediterrâneo o processo está ainda mais atrasado. Como vamos exigir que outros o façam nos restantes mares e oceanos?

Fica para outro texto referir a COP28, a 27, a 26…

Governos autocráticos e democráticos, reféns de economias predatórias, vão apresentando alguns travões, mas são insuficientes. O que seria o planeta com a economia em roda mais livre, como defendem alguns?

Ao longo das décadas, temos sido bons a encontrar mínimos denominadores comuns, e ainda melhores em não os cumprir, transformando-os sempre em máximos inalcançados. Sistematicamente. Assim, procrastinando as atitudes mais necessárias, pressionados por quem corre ao lado e empurrados por quem vem atrás, estamos a falhar colectivamente. Afinal, talvez estejamos mesmo a caminho do precipício, tais quais inconscientes lemingues.

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