O que será feito da Rita?

Assim que começámos a trabalhar, depressa deu para perceber que a Rita tinha um ritmo de aprendizagem e de realização das tarefas escolares mais lento do que o dos colegas.

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A Rita chegou à escola uns dias depois de as aulas terem começado. Tinha seis anos, era a minha vigésima sexta aluna e, assim que a vi entrar na sala da aula percebi que havia algo que não estava bem. Eram os olhos. Não, não eram bem os olhos: era o olhar. O olhar era parado e inexpressivo. Foi o olhar da Rita que me chamou a atenção.

Parámos a aula para receber a Rita, indiquei-lhe a sua mesa e falei com a senhora que a acompanhava. Era a tia e, tal como a Rita, tinha uns grandes olhos azuis, só que, ao contrário dos olhos da sobrinha, estes eram vivos e sorridentes. Era uma pessoa que sorria com o olhar todo e, quando sorria, parecia que os olhos se iluminavam.

A tia explicou-me que se tinha enganado na data de início das aulas e combinámos que viria falar comigo, uma vez que não tinha vindo à reunião do 1.º ano, no princípio de ano letivo. Quando reunimos, fiquei a saber a história da Rita. O seu pai, que tinha um défice cognitivo acentuado, vivia com a mãe (a avó da Rita), a irmã e o cunhado (os tios da Rita). Um dia, foi participar numa excursão destinada a pessoas com a mesma problemática, envolveu-se com uma das participantes… e, tempos depois, nasceu a Rita.

Acontece que, por incapacidade dos pais biológicos para cuidarem da Rita, a bebé foi indicada para adoção pela equipa do hospital onde nasceu. A tia foi visitá-la e, segundo me relatou na nossa primeira reunião, quando a viu tão pequenina, indefesa e bonitinha, “embrulhada numa trouxinha”, não resistiu. Deu início ao processo de adoção e, depois de cumpridas as formalidades legais, levou a sobrinha para casa, tornando-se sua mãe adotiva. A única coisa de que a tia tinha receio era que a menina “tivesse vindo com algum problema”…

Assim que começámos a trabalhar, depressa deu para perceber que a Rita tinha um ritmo de aprendizagem e de realização das tarefas escolares mais lento do que o dos colegas. Tinha uma postura alheada daquilo que se passava na sala de aula, parecendo sempre um pouco ausente. Rapidamente, começou a beneficiar de apoio pedagógico, mas a evolução continuava a ser pouco consistente.

O tempo foi passando, sem que houvesse uma evolução significativa, pelo que foi solicitada a avaliação do desenvolvimento da menina. Os resultados revelaram um desenvolvimento cognitivo abaixo da média para a faixa etária, mas a Rita, a pouco e pouco, foi realizando alguns progressos.

A tia ia aparecendo na escola para acompanhar a aprendizagem da Rita e dar notícias da sua vida. Um dia, era a filha que tinha ficado desempregada e tinha ido viver para sua casa com o marido e as duas filhas, mas como fazia questão de referir, “com boa vontade, tudo se arranja”. Noutro dia, era porque a neta que tinha leucemia há ano e meio, estava muito mal e acabou por morrer antes de fazer seis anos. Mas o mais incrível é que a tia da Rita falava de todas estas provações com tristeza, mas também com doçura e com uma enorme coragem.

Uma pessoa assim merece que lhe aconteçam coisas boas e foi precisamente o que se passou, quando a Rita estava no 2.º ano. Numa das nossas conversas, confidenciou-me que se ia casar, mas antes ia pôr os dentes em falta, porque queria ficar bonita nas fotografias do casamento. Mas o casamento tinha outro motivo: ao mesmo tempo, iam tratar do processo de adoção da Rita pelo tio, para “ficar tudo direitinho”.

O casamento dos tios foi um acontecimento na turma! A Rita trouxe fotografias com as quais fizemos cartazes para colocar nas paredes da sala e escrevemos adjetivos altamente elogiosos para descrever os seus familiares. Finalmente, aquela família iria ter a paz e a felicidade que merecia! Mas, infelizmente, foi por pouco tempo.

Quando a Rita estava no 3.º ano, a tia soube que estava gravemente doente e, no 4.º ano, quando apareceu na festa de Natal, bastou-me olhar para ela para perceber que a situação estava mal parada. Durante a atuação da Rita, a tia não conseguiu controlar-se e começou a chorar. Eu, ao vê-la naquele desgosto, comovi-me de tal maneira que também me começaram a cair as lágrimas. Perplexos, os alunos perguntaram porque chorávamos e eu só consegui balbuciar que falaríamos noutra altura.

No dia seguinte, as perguntas não se fizeram esperar. Aguardei por um momento em que a Rita não estava na aula, para abordar o assunto. “Sabem que a tia da Rita está doente?”, perguntei. Sim, sabiam. “Sabem que está muito doente?”. Não, não sabiam. Então disse que lhes ia pedir algo de muito especial: que, quando a Rita precisasse, fossem muito amigos dela.

A minha vida também correu mal nessa altura e tive de me ausentar, mas fui com o coração apertado com a história da Rita. Quando me contarem o final inevitável, tive muita pena pela tia e pela menina, e quis saber como se tinham comportado os colegas. Contaram-me que cerraram fileiras em torno da Rita e a protegiam incondicionalmente de tudo e todos.

Fiquei muito orgulhosa dos meus alunos e, mais uma vez, comovida: com uma história tão bela e tão triste tinham aprendido a ser melhores pessoas. Espero que tenham levado dentro deles esta história de bondade e solidariedade. Eu, pela parte que me toca, dou por mim muitas vezes a questionar-me: o que será feito da Rita?


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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