A coerência de Henry Kissinger

Kissinger representou, várias vezes, o lado obscuro de uma política norte-americana, que justificava o uso da violência em nome da contenção do comunismo no panorama mundial.

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Henry Kissinger foi sempre coerente. Morreu aos 100 anos e escreveu continuadamente até aos 99, refletindo sobre o passado, o futuro e a natureza da política internacional. Kissinger, porém, não se restringiu a ser um académico e autor de livros, pelo que procurou pôr em prática as suas teorias. Envolvendo-se profundamente nos principais conflitos internacionais dos finais dos anos 60 e início dos 70 do século passado, aplicou as suas ideias. Manteve uma coerência notável, mas também nociva.

Ao ser fiel a uma escola desapaixonada e pragmática de política internacional, Kissinger ultrapassou uma série de obstáculos, que prevaleciam durante as primeiras décadas da Guerra Fria. Observara, cético, a superioridade moral com que a política externa norte-americana se vangloriava e, ao mesmo tempo, demonizava os inimigos. Dessa forma, quando chegou ao poder como conselheiro de segurança nacional do Presidente Richard Nixon, em 1969, conseguiu romper com alguns desses preconceitos ideológicos que barravam possíveis negociações entre os Estados Unidos e os respetivos rivais. A coerência do seu pensamento ditava que, tal como Stanley Hoffman sublinhou, Kissinger não pretendia tratar de política internacional como um conselheiro de um hipotético Estado mundial, debitando considerações morais por decreto ou esquecendo, por via da abstração, inúmeros interesses reais e conflituantes; pelo contrário, desceu dessa torre e construiu pontes com rivais, através de uma abordagem diplomática, frequentemente sigilosa.

Empreendeu então, seguindo as diretrizes cautelosas do Presidente Nixon, o percurso que levou ao diálogo dos Estados Unidos com a República Popular da China e, ao mesmo tempo, evitou o isolamento da União Soviética, negociando com Moscovo, até 1972, um dos principais acordos de armamentos do século XX: o SALT. Os efeitos dessas ações perduraram, relevando-se: a assinatura de tratados de desarmamento nuclear subsequentes entre a União Soviética e os EUA; os Acordos de Helsínquia, de 1975; o estabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a China, em 1979. Identificou habilmente os perigos de uma disputa ideológica, advogando, por conseguinte, reconhecimento e respeito mútuos entre grandes potências, independentemente das diferenças políticas e culturais.

No entanto, a coerência entre a conduta de Kissinger e o seu pensamento cavou também um fosso entre as chamadas grandes e as pequenas potências. Estas últimas, apesar de tudo, constituem a maioria dos atores soberanos da cena internacional. Fiel aos seus princípios, o tratamento igual entre Estados ficaria sobretudo restrito a quem detinha poder efetivo. Se, por um lado, a sua prática notável de aproximação entre os grandes países e blocos, apesar das diferenças ideológicas, criou laços quando diferenças se agudizavam, por outro tal prática resultou, igualmente, num espaço reduzido de interação em que as grandes potências se equilibram entre si. Não dava, de facto, lugar a atores menores da cena internacional.

Kissinger representou, várias vezes, o lado obscuro de uma política norte-americana, que justificava o uso da violência em nome da contenção do comunismo no panorama mundial. Aconselhou, em 1969, o bombardeamento massivo do Camboja; não admoestou o Paquistão, em 1971, durante a guerra de libertação do Bangladesh; nem a Indonésia, em 1975, aquando da invasão de Timor-Leste; criou, ainda mais, as “condições”, segundo as suas palavras, para o golpe de Estado brutal no Chile, em 1973.

Através das suas ideias e conduta, tornou-se uma figura tutelar das Relações Internacionais até à sua morte, sempre recordado e permanentemente citado. Será assim sempre uma figura incontornável resultante da coerência – notável e nociva – do seu pensamento e ações.

O actor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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