Fernando Pessoa está no Porto/Post/Doc (e não foi sozinho)

Uma barrigada de bom cinema neste primeiro fim-de-semana do festival portuense: estantes assassinas, poetas escondidos, exílios, memórias e experiências, num sem-número de propostas interessantes.

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Onde Está o Pessoa?: Leonor Areal leva-nos à descoberta de um Fernando Pessoa em movimento algures em 1913 DR
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Foi para fins-de-semana como estes dois primeiros dias do Porto/Post/Doc que se inventou a expressão inglesa frontloading: encontramos de facto concentrados logo à cabeça alguns dos títulos mais importantes que o festival do "cinema do real" escalou para esta edição de décimo aniversário. O cinéfilo avisado poderá assim apanhar uma barrigada de bom cinema, em alguns casos muito bom cinema, navegando ao longo do fim-de-semana entre o Batalha Centro de Cinema e o Passos Manuel. A começar por dois dos melhores documentários nacionais de 2023, na competição Cinema Falado, dedicada a filmes de língua portuguesa, e que tem nesta edição uma espécie de “best of” do que foi sendo mostrado por outros festivais ao longo dos últimos meses.

As Melusinas à Margem do Rio, de Mélanie Pereira (Batalha, sábado, 15h; e Passos Manuel, quarta-feira, 21h30), vencedor do concurso nacional do Doclisboa 2023, é um inteligente condensado de experiências pessoais e colectivas à volta do conceito de identidade num mundo globalizado. Sobre Verdade ou Consequência?, de Sofia Marques (Batalha, domingo, 19h; e sexta-feira, 21h), retrato crepuscular de um actor e encenador de excepção: Luis Miguel Cintra não poderia ter melhor homenagem.

No formato curto, nunca é demais recomendar 2720, o mais do que excelente retrato em movimento de uma manhã de bairro por Basil da Cunha, que venceu o Curtas Vila do Conde. Será exibido num programa competitivo (Batalha, sábado, 21h; e quarta-feira, 17h) que inclui ainda, com toda a justiça, Big Bang Henda, de Fernanda Polacow: retrato de artista (no caso, Kiluanje Kia Henda) por obra interposta, choque de histórias, locais, vivências, filmado com curiosidade sôfrega e inteligência formal.

O Cinema Falado recupera ainda este fim-de-semana Astrakan 79 (Batalha, sábado e sexta-feira, sempre às 19h), o mais recente trabalho de Catarina Mourão, estreado no IndieLisboa, diálogo entre gerações a partir da experiência de Martim Santa Rita como estudante na URSS em finais dos anos 1970. O dispositivo que a autora do notável A Toca do Lobo encontra é inteligente e prossegue a sua exploração dos recantos escondidos da vida familiar; mas o distanciamento nele inscrito tolhe-lhe os movimentos, acabando por ser um filme inconclusivo, estéril, algo teórico.

2720, de Basil da Cunha DR
Big Band Henda, de Fernanda Polacow DR
Astrakan 79, de Catarina Mourão DR
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2720, de Basil da Cunha DR

Teórico é igualmente Onde Está o Pessoa? (Batalha, domingo, 17h; e Passos Manuel, quinta, 17h15), mas de modo francamente mais lúdico. A historiadora Leonor Areal pega em imagens da saída de um concerto do Teatro República (antecessor do actual São Luiz) rodadas em 1913, e propõe ao espectador um jogo de Onde Está o Wally? em busca de Fernando Pessoa, de quem se julgava não existirem imagens em movimento. Não haverá mais de dois, três minutos de imagens desta “saída dos espectadores do concerto sinfónico”, mas é uma delícia acompanhar o modo como Areal as vai desmontando, identificando quer o dia em que tudo se passa quer as personagens que vão aparecendo (com muitas surpresas pelo caminho).

Mas tivéssemos nós de escolher, neste primeiro fim-de-semana, um destaque imperdível, então seria o diálogo à distância entre dois títulos da competição internacional. De um lado: A Los Libros y las Mujeres Canto, da basca María Elorza (Batalha, domingo, 21h15; e quarta-feira, 19h15). Do outro: Bye Bye Tiberias, da franco-palestiniana Lina Soualem (Batalha, sábado, 17h; e Passos Manuel, sexta-feira, 21h30). Dois filmes de mulheres e sobre mulheres, mas muito mais do que apenas isso: dois filmes que se aproximam um do outro pelo modo como inscrevem a vivência pessoal das suas autoras e das suas famílias no contexto da grande História que as rodeia.

O filme de Elorza pega num episódio quase anedótico — uma estante de livros que cai em cima da mãe — para questionar o poder da literatura através dos tempos, do livro como “cavalo de Tróia” através do qual o conhecimento é transmitido entre gerações, com direito a um minuto de silêncio por todas as bibliotecas destruídas ao longo dos séculos. Será muito interessante descobrir o restante trabalho da cineasta, cujas anteriores curtas serão exibidas nesta edição do festival.

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A Los Libros y las Mujeres Canto, da cineasta basca María Elorza DR
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Bye Bye Tiberias, da cineasta franco-palestiniana Lina Soualem DR

Lina Soualem recorre a home movies familiares e às memórias da mãe, a actriz Hiam Abbass (que rodou com Jim Jarmusch, Steven Spielberg ou Ridley Scott), para reconstruir o itinerário da família através da linhagem feminina com epicentro na aldeia de Deir Hanna, hoje em pleno território israelita. Não é preciso carregar na tecla do conflito israelo-palestiniano para se sentir em Bye Bye Tiberias a tragédia repetida das vidas dilaceradas pelos movimentos da História: a frase "you can’t go home again" é particularmente aplicável a uma saga que encerra com a venda da casa da família, como se não houvesse outra hipótese de seguir em frente que não fosse deixar o passado para trás. O filme, esse, merece ser lembrado.

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