Será que a economia já não funciona como funcionava? O exemplo da política monetária

Em 2008, a Rainha de Inglaterra quis saber por que razão os economistas não previram a crise financeira internacional desse ano. A resposta que recebeu então não foi inteiramente satisfatória.

Ouça este artigo
00:00
05:45

A economia, no duplo sentido de atividade e de ciência económica, sempre evoluiu e continuará a evoluir. O problema é que ultimamente as mudanças têm sido tão frequentes e imprevisíveis que tornam difícil perceber o que está a acontecer na economia e saber como atuar sobre ela de forma atempada e equilibrada.

As referidas mudanças têm feito com que os modelos utilizados pelos Bancos Centrais (BC) – representações simplificadas da realidade – não captem muito bem e em tempo útil o que está a acontecer na economia e possam induzir em erro os decisores da política monetária.

Um exemplo ilustrativo foi a pergunta feita pela Rainha de Inglaterra, em 2008, quando quis saber por que razão os economistas não previram a crise financeira internacional desse ano. A resposta que na ocasião lhe foi dada não foi inteiramente satisfatória. Só depois foram encontradas as boas explicações e, entre as relevantes para este artigo, temos a falta ou a deficiente representação do dinheiro nos modelos dos BC e o facto de, até então, a política monetária estar quase só focada no controlo da inflação e não prestar também a devida atenção à defesa da estabilidade do sistema financeiro.

Foto
Christine Lagarde, presidente do Conselho de Governadores do Banco Central Europeu RONALD WITTEK/LUSA

Outro exemplo é saber por que razão os principais BC não previram a subida da inflação a seguir à pandemia e levaram tanto tempo a reconhecer o erro e a agir. Os BC começaram por considerar que a subida do índice de preços no consumidor (a medida da inflação) decorria, sobretudo, de uma alteração dos preços relativos de apenas alguns produtos (v.g. alimentares e energia) resultante de disrupções pontuais e passageiras em algumas cadeias de produção e de abastecimento (choque negativo da oferta). Assim sendo, a subida dos preços diminuiria, por si própria, à medida que essas disrupções terminassem, sem que fosse preciso subir as taxas de juro para contrair a procura agregada e baixar a inflação.

Porém, a realidade foi diferente. A inflação acabou por ser mais agressiva e menos transitória do que o esperado, devido a um novo choque adverso da oferta, a invasão da Ucrânia pela Rússia, que encareceu imediata e substancialmente os produtos energéticos e, por contágio, a subida dos preços dos outros bens e serviços. Para este efeito também contribuíram, como condição permissiva, a poupança acumulada durante a pandemia e a liquidez então injetada na economia pelos governos e pelos BC, que possibilitaram uma procura suficiente para sustentar a generalizada subida dos preços (inflação). Daqui deduz-se que os modelos dos BC, mais focados no lado da procura da economia – o consumo, o investimento e as exportações –, não têm dado atenção suficiente ao que se passa no lado da oferta – a produção e as importações – e devem passar a fazê-lo.

A razão por que os modelos dos BC não estão a funcionar tão bem quanto seria desejável deve-se, antes de mais, às mudanças causadas por várias crises que, pelas interligações entre as suas causas e consequências, constituem uma macrocrise ou uma policrise que tem provocado grande incerteza e gerado múltiplas ameaças e riscos para o normal funcionamento da economia.

As modificações causadas pela policrise já levaram a presidente do BCE, a dizer que as mesmas provocaram “mudanças nas relações económicas e alterações nas regularidades estabelecidas” e o presidente da Reserva Federal americana a afirmar que “estamos navegando pelas estrelas e sob céu nublado”. O que ambos estão a dizer é que os modelos dos seus BC não estão a representar bem a realidade, são agora menos significativos e originam mais falhas e/ou erros de previsão.

Para além das limitações dos modelos, também não devemos excluir responsabilidades de quem prepara e toma as decisões de política monetária, seja por deficiente interpretação dos resultados dos modelos e de outros indicadores, seja por alguma relutância em abandonar teorias e modelos habituais, ou ainda em reconhecer consequências não intencionais de medidas erradas tomadas no passado. Como disse Keynes, por vezes, “a dificuldade não está tanto em desenvolver novas ideias, mas em escapar das antigas”.

No atual contexto de grande complexidade e incerteza, perante toda a informação disponível, os BC devem sempre ponderar o risco de fazer de mais e o de não fazer o suficiente para alcançarem os seus objetivos.

Em setembro, na dúvida, o BCE preferiu fazer de mais (embora diga que fez o necessário) e voltou a subir a taxa de juro. Considerou que, desse modo, defendia melhor a sua credibilidade técnica e sua independência política face a pressões de alguns chefes de Governo. Todavia, não teve na devida conta que a inflação já vinha a descer mais depressa do que o esperado e que as anteriores subidas das taxas de juro ainda não tinham produzido todos os seus efeitos, acabando assim por impor uma maior e mais duradoura restritividade à política monetária e aumentar o risco de um maior abrandamento da economia.

Em outubro, ponderados os riscos, o BCE decidiu – e bem – não aumentar a taxa de juro, embora a sua presidente tivesse admitido a possibilidade de novas subidas e declarado que as taxas vão permanecer elevadas durante um longo período.

Os BC começaram a usar a orientação futura por causa do desfasamento temporal (entre 12 e 18 meses) com que atua a política monetária e porque supõem que a inflação atual é influenciada pela inflação esperada, o que não é seguro. A orientação futura também pode prejudicar a credibilidade e condicionar a ação dos BC. O início tardio da subida das taxas de juro pelo BCE também foi devido ao compromisso que antes assumiu de as não aumentar antes do fim de junho de 2022.

Os chefes de Governo também não devem pressionar o BCE para o que quer que seja. É inútil e até pode ser contraproducente se contribuir para que o BCE não o faça, ou faça o contrário, para mostrar que é independente e insensível a tais pressões, como pode ter acontecido com a subida da taxa de juro em setembro.

A política monetária do BCE é mais difícil que a dos outros BC porque é a política de uma união monetária, onde há tantas políticas de finanças públicas quantos os seus países e uma única taxa de juro diretora para todos eles, os quais estão em situações económicas e financeiras diferentes. Enquanto não houver uma maior integração orçamental e política na Zona Euro, a política monetária do BCE continuará a ter o referido problema e a correr o risco de uma nova crise na Zona Euro.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários