Investir em ecógrafos ou tacógrafos? O dilema do SNS

Os médicos não são como os camionistas, o que é pena.

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Qualquer pessoa que já tenha levado uma facada, engolido um saca-rolhas ou sido diagnosticada com um carcinoma invasivo da mama sabe como ninguém que os médicos são tipos fenomenais. Mas longe vão os tempos em que a maioria ganhava bem e tinha o respeito da nação, principalmente de 89% das mães portuguesas, que de bom grado dariam o baço, para que os seus filhos e filhas fossem estudar Medicina.

Em 2023, as notícias sobre a profissão são catastróficas: caos nas urgências, debandada no SNS e uma longa travessia naquele que se anuncia como o pior mês de sempre do SNS.

É difícil avaliar o valor de um médico. E eu não consigo defender que um neurocirurgião tem mais valor que o senhor do talho que me corta o fiambre como eu gosto, bem fininho. Se eu tivesse um aneurisma cerebral, talvez pensasse de maneira diferente, mas o Serviço Nacional de Saúde público foi criado para oferecer o melhor cuidado a todos que dele necessitam – juízes, indigentes, esteticistas ou defesas-centrais do Famalicão porque todos têm o mesmo valor.

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Os médicos não são mais do que os outros, mas exatamente como os outros. Há até quem goste de dizer: “os médicos também são seres humanos”, que é uma frase ridícula, toda a gente sabe que os médicos são acima de tudo “pessoas humanas”.

Como pessoas humanas, os médicos levam para casa o trabalho, mesmo quando não querem. É assim com toda a gente: é normal e relativamente desaconselhável, mas dificílimo de evitar. Que o diga a florista do bairro, que só quando está a acabar o jantar às dez da noite, se lembra que trocou as moradas de envio de uma coroa de crisântemos e antúrios para um funeral, com um bouquet de rosas escarlates para um rapaz tremendamente apaixonado e imensamente não correspondido. Nenhuma lei do “direito a desligar” é capaz de suspender o subconsciente matreiro, que só nos lembra do email urgente que devia ter sido enviado (mas que ficou na pasta de rascunhos), no preciso momento em que já desabotoámos mais de metade da camisa da nossa parceira.

Nos médicos humanos, o processo é semelhante, só que o subconsciente de um médico de família pode ter uma lista com quase 2000 doentes. Oncologistas, cirurgiões ou internistas talvez tenham menos pacientes, mas muitos deles estão a morrer. Quando uma médica sai do hospital a um domingo, depois de 12 horas de urgência noturna, a quarta num mês no seu pleno direito de gozar a vida por mais que queira não está absolutamente livre do trabalho. Mais hora menos hora, irá lembrar-se do doente que morreu na noite anterior. Os colegas disseram-lhe que fez tudo o que estava ao seu alcance, mas será que havia algo mais a fazer? E aquela TAC maldita da Dona Amélia, com metástases espalhadas em todo o abdómen. Que consulta angustiante, será que geri bem a situação é o pensamento que a faz acordar com ansiedade, às 4 da manhã. E o que fazer com os ataques de pânico do rapaz que ainda nem chegou aos 30, e não consegue dormir uma boa noite de sono há mais de meio ano? E as queixas do Sr. José, que perdeu dez quilos nos últimos seis meses? Devia ter pedido ainda mais exames? E o doente que decidiu operar por suspeita de apendicite, mas que na verdade não tinha nada? E a paciente que encaminhou para o neurologista, que depois lhe devolveu um diagnóstico de esclerose múltipla?

Os médicos não são como os camionistas, o que é pena. Se fossem, teriam um estetoscópio de duas cabeças, uma para auscultar os sinais vitais dos pacientes e outra com um tacógrafo para garantir que as suas próprias funções vitais não estavam em risco por falta de repouso ou excesso de fadiga. Afinal, de que serve um Serviço Nacional de Saúde cada vez mais caro, mas que é incapaz de cuidar da saúde e bem-estar dos seus próprios médicos (e provavelmente de enfermeiros, auxiliares, etc.)? Talvez sirva o sistema privado, que irá ganhar duplamente: recrutando como funcionários os que desistem do SNS, e como pacientes, os que ainda que por lá resistem.

Um indivíduo que às vezes vai ao médico

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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