Identificar a genética de uma vinha centenária para perpetuar o seu field blend

A Quinta do Crasto está a estudar a genética das videiras da icónica vinha Maria Teresa, com o objectivo de perpetuar o seu field blend, de dar ainda mais longevidade ao seu tesouro centenário.

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A vinha Maria Teresa, com exposição a Nascente, é a vinha mais icónica da Quinta do Crasto, em Sabrosa, no Cima Corgo Direitos Reservados
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"O projecto de investigação PatGen Vineyards surgiu com uma pergunta, há 12 ou 13 anos, quando havia videiras na Maria Teresa que estavam a morrer: [no seu lugar] vamos plantar bacelo, vamos plantar o quê?". Foi então que a Quinta do Crasto, explica o seu director de enologia, Manuel de Lobo Vasconcellos, começou a olhar para aquela vinha centenária com uma preocupação legítima: por cada videira que morre (e é normal algumas morrerem quando já são provectas) perde-se um pedaço do mais rico património vitivinícola do Douro, as suas vinhas velhas e a diversidade de castas que nelas encontramos, com tudo o que isso aporta ao perfil dos vinhos da região e a uma viticultura que se quer mais resiliente.

O Crasto está há uma década a estudar a genética das videiras da icónica vinha Maria Teresa, que dá origem ao vinho homónimo, o mais especial do produtor e um dos vinhos que a região vende na liga dos mais de 100 euros (255 euros o último lançamento, para sermos concretos). O objectivo é perpetuar o seu field blend ​ — poder replantar uma falha com o mesmo genótipo da videira que ali estava anteriormente — e dar ainda mais longevidade a um tesouro centenário.

Na vinha situada na quinta do Cima Corgo (Sabrosa) e com cerca de 4,7 hectares, foram já identificadas e classificadas visualmente 54 variedades distintas, dessas já foi possível obter a validação genética, ou molecular, para 34. "As outras ainda estão em estudo, prevendo-se que a classificação genética esteja concluída em 2024", explica a enóloga Cátia Barbeta, que acompanha o projecto que envolve toda equipa de viticultura e já levou à contratação de outra bióloga de formação, Diana Augusto.

"Tínhamos ali uma ameaça grande: perdermos a identidade da vinha. Isso levou-nos a pensar que teríamos que pôr ali o que já lá estava", recorda Manuel Lobo de Vasconcellos, que explica o quão "doloroso" foi o caminho traçado na última década. Nos primeiros anos, a identificação visual das castas — pelas folhas, porte e outras características — era feita a olho por classificadores do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, que depois passavam à equipa do Crasto apontamentos manuscritos.

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Fotografia antiga da vinha Maria Teresa, no Crasto; imagem da vinha centenária será dos anos 1930 Direitos Reservados

Quando os resultados das análises ao material genético recolhido nessas videiras voltava do laboratório acontecia amiúde essa informação não bater certo com o que a viticultura e a enologia do Crasto viam no terreno. Foi preciso começar a bater na parede para encontrar o caminho: era preciso georreferenciar as plantas. Essa georreferenciação foi, por si só, um desafio. "Como temos videiras muito velhas, que se entrelaçam com a videira vizinha, na identificação visual, estávamos a tirar e a classificar uma folha quando essa folha era da planta seguinte", conta Lobo de Vasconcellos.

Foi então contratada uma empresa para fazer a georreferenciação da Maria Teresa e a vinha foi dividida em 63 parcelas activas. O resultado desse trabalho são 31.825 pontos de coordenadas de GPS, 24.000 dessas videiras e "30% de falhas", refere o enólogo. Quando em laboratório há a confirmação genética de um genótipo, esse BI da planta é associado a um código interno e deixa de haver confusões no terreno.

Para o administrador da Quinta do Crasto, Tomás Roquette, "o mais importante" é saber o que estava na vinha quando já só há "um tronco seco para ver". "Agora, se isso acontecer, já sabemos o que lá estava. Trazemos o GPS de precisão, que nos vai dar um código e dizer o que ali estava. Já foi identificado no ano passado, era Rabo de Ovelha, Borrado das Moscas ou outra casta qualquer."

Enquanto a identificação visual pelos classificadores é feita videira a videira, a recolha de material com vista a fazer a caracterização genética já é feita por amostragem. "Vamos imaginar o caso de uma Tinta Roriz, por exemplo: identificamos no campo visualmente, vamos supor, 60 plantas de Tinta Roriz, dessas faremos depois uma selecção, suponhamos, de três plantas", explica Cátia Baterta.

Os genótipos estão a ser replicados num campo de multiplicação instalado "a 300-400 metros da vinha Maria Teresa", prossegue Cátia, acrescentando que a equipa, que também já está a estudar os micro-terroirs da vinha, tentou "encontrar um perfil de solo o mais idêntico possível." Os técnicos vão à "nursery" buscar varas do mesmo genótipo que outrora existiu onde hoje há uma falha a preencher e fazem enxertia tradicional utilizando um bacelo ou porta-enxerto.

A enóloga detalha que "cada casta tem o seu fingerprint genético". "É tudo Vitis vinifera, portanto, há um genoma comum, mas depois existem pequenas sequências de DNA que são específicas de cada casta. E se nós conseguirmos fazer a recolha do DNA genómico e o conseguirmos utilizar nos primers — que são umas sequências de bases de dados específicas que nos permitem depois, por reacção PCR, amplificar essas sequências de DNA específicas —, identificamos geneticamente determinada casta por comparação com uma base de dados."

"Com isto, conseguimos perpetuar o field blend da vinha Maria Teresa. Este é que é o grande objectivo: perpetuar o field blend da Maria Teresa", sublinha Tomás Roquette. Mas há outro: dali são produzidas 9000 garrafas de vinho, mas, se for possível amanhã "aproveitar 100% da vinha", essa produção poderá ir, "em anos excepcionais, às 14, 15 ou 16 mil garrafas".

Esse "projectar o futuro" na Quinta do Crasto, explica Manuel Lobo de Vasconcellos, também se faz com vinha nova plantada com material genético recolhido na Maria Teresa — e já são três as novas plantações com origem no PatGen Vineyards — e, claro, com ferramentas complementares. Como as imagens NDVI, que traçam com recurso a drones um retrato muito preciso do vigor e de outros indicadores das plantas na vinha. A georreferenciação serve ainda para assinalar com precisão determinada videira a precisar de cuidados diferenciados e fazer o que ocorre chamar de viticultura de alfaiate.

À conta do projecto, a equipa do Crasto confirmou também o que há muito se diz no Douro: os antigos é que sabiam como os antigos faziam. Colocar castas mais sensíveis a doenças e pragas nos caminhos e acessos às vinhas, por exemplo, servia de alerta para uma melhor gestão da saúde do conjunto de videiras. E, quem sabe, todas aquelas castas cujos nomes desconhecemos, as chamadas minoritárias, não têm afinal interesse enológico — perceber esse potencial é um desafio lá mais para a frente.

O PatGen Vineyards, assumido pela empresa sem outros apoios para além do programa VITIS (apoio à reestruturação e reconversão das vinhas) e cujo custo a Quinta do Crasto não tem contabilizado à data, faz sentido numa estratégia que procurou desde o primeiro momento "dominar quase 100% da matéria-prima" — o produtor tem hoje 220 hectares de vinha e gere directamente outros 30, no Cima Corgo e no Douro Superior — e é um "esforço" que no futuro Tomás Roquette gostava de ver replicado na/pela região.

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