A síndrome de Israel

Conviver com a violência brutal significa ter a consciência tranquila, o que, segundo Gideon Levy, é possível com estas premissas: somos os escolhidos, somos as vítimas e os outros não são humanos.

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Em Gaza e na Cisjordânia morrem diariamente civis às centenas, enquanto por cá discutimos se o que se passa é ou não genocídio. Deve, contudo, ser qualquer coisa, porque o certo e que mata muita gente e, nesta fase, praticamente de um só dos lados. Sem esquecer que esta gente que vai morrendo é a que foi desapossada das suas terras e a que vive encurralada numa faixa de território encostada ao mar Mediterrâneo.

Desde as definições de genocídio retiradas dos dicionários da Porto Editora à indicada por Carmo Afonso, assente no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, o certo é que paira uma nuvem no ar sobre a desproporcionalidade da vingança do Estado de Israel face ao ataque terrorista de 7 de Outubro. Para se ser justo, merece perguntar o que é uma retaliação proporcional.

Temos assistido a tudo, desde a barbaridade do Hamas, pela matança de civis que incluíam bebés, à morte multiplicada e indiscriminada de civis, a ataques a ambulâncias e a campos de refugiados pela mão da FDI (Força de Defesa de Israel). A impunidade de Israel merece também uma reflexão.

Tratando-se, como se diz, da maior democracia do Médio Oriente, essa fatalidade não parece produzir qualquer efeito retractivo no calculismo maquiavélico com o exército de Israel actua sobre civis. De certa forma, os israelitas esperam encontrar nas sociedades ocidentais as bases políticas que legitimem o massacre do povo palestiniano. A herança do Holocausto ter-se-á desvanecido por amnésia para o Estado de Israel, enquanto convém manter-se activa para o Ocidente.

Mas é exactamente aí, na memória da Shoah, que, em parte, reside a informação sociológica, cultural e militar que explica esta agressividade. O jornalista Gideon Levy, do Haaretz, fala numa sociedade israelita rodeada de “paredes mentais”, onde convivem três princípios que permitem aos israelitas conviver com a violência brutal: o facto de os israelitas se considerarem membros de um povo eleito (a carta de alforria ideal para que esse povo se permita o que entender); o ocupante apresenta-se paradoxalmente como a única vítima legítima (que advém da desigualdade histórica que todos conhecemos, e, sendo vítima, manipula a própria linguagem e os valores e a ética universal, se é que isso existe); e o modo de encarar o povo palestiniano de forma desumanizada, numa proporção muito semelhante àquela de que foi alvo durante o III Reich. Conviver com a violência brutal significa ter a consciência tranquila, o que, segundo Gideon Levy, é possível com estas três premissas: somos os escolhidos, somos as vítimas e os outros não são humanos. Infalível. É a táctica do narcisismo e da sua crença na superioridade espiritual e moral. Certas pessoas também são assim.

O problema da vítima e de uma teoria da justiça construída em seu redor é que se corre um risco excessivo de radicalidade e de unilateralidade. A vítima alimenta-se da cobrança e, no caso de Israel, com a cultura do genocídio, essa cobrança é insaciável e, naturalmente, interminável.

A prova de que a vítima manipula é o facto de não ser possível falar com ela sem que o outro se sinta o algoz. É necessário renunciar sempre aos próprios argumentos, se quisermos ter a pretensão de combater os da vítima. Os fanáticos, objecto de estudo do escritor Amos Oz, são muito semelhantes às vítimas, no culto da personalidade, na auto-idolatria, na incapacidade de entender os outros, na falta de sentido de humor, na astúcia em infligir terríveis sentimentos de culpa ao outro. A cultura israelita assenta na argumentação moral da dominação pelo paradoxo da vitimização. Isso não quer dizer que Israel não se deva defender e que a comunidade internacional não deva fazer tudo o que possa para Israel subsistir. Deve.

Mas o limite da vítima é aquele em que faz do outro uma outra vítima.

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