O Coração Ainda Bate. Nina

Inês Meneses fala sobre a importância dos detalhes.

Disse-me a dentista quando me estendeu uma mão-cheia de pequenas pastas de dentes: “Pode estranhar o sabor. Há quem não consiga.”

Vim no caminho de regresso a pensar que travo seria esse de tão impossível, quando a vida já me deu tantos e estranhos paladares. Dissabores, pois claro. Ninguém está a salvo deles.

Quando, à noite, experimentei a desafiante pasta, sorri por perceber que o sabor me agradava, e voltei a concluir que somos todos tão diferentes e complexos a ponto de uns rejeitarem o que outros apreciam. A vida nunca será um consenso. A angústia de viver vem de lugares distintos em nós. Quando apontamos o dedo a alguns dizendo: “Mas tem tudo, como se pode queixar?” Queixamo-nos. Queixamo-nos de coisas pequeninas, outros de coisa nenhuma, e os que vemos ao longe (perante a nossa impotência) a gritar reclamam de coisas maiores às quais não chegamos. Não sonhamos o que é lá estar.

Mas, sabem, a tristeza não tem continente, não tem país, não tem misericórdia de ninguém na hora em que nos visita. Todos, mesmo os que se ornamentam de excesso, facilmente podem mergulhar na tristeza. O dissabor na minha boca pode ser o prazer alheio. Devia ser um exercício obrigatório valorizar o que temos: chegar sem mossa ao fim do dia com uma casa e comida. A sociedade há muito que nos instrumentaliza para caminharmos sobre as coisas sem as questionar. Na outra ponta temos os que nesse imenso guarda-chuva da auto-ajuda julgam ter a solução para todos os problemas, não conseguindo, muitas vezes, perceber como saldar a sua dívida existencial. Ninguém sabe, na verdade, mas pensar um bocadinho, pondo a vida em perspectiva, tem-me ajudado a distinguir os sabores: o que sinto, por vezes, é amargo, mas nada comparável ao dos que, do outro lado da rua, dormem num forte de papelão. Como é que nos podemos dizer insatisfeitos quando há quem nunca tenha experimentado a que sabe a satisfação?

A pasta de dentes está ali e tenho-a usado todos os dias - passou a ter um significado. Muitas coisas dispostas pela casa lembram-me o que já fui e onde estive. Há objectos que escapam ao olhar dos outros e que, sem querer, me descrevem num período de vida. Não os afasto, até se contam uma história triste. Estão ali silenciosos, mas é como se dissessem baixinho o meu nome, chamando-me à realidade: vieram nas mãos de pessoas que passaram fugazes pela minha vida, mas que acabaram por deixar rasto.

O que nos falta é tempo para pousar sobre esse silêncio onde estão tantas leituras da vida. Aliás, não falta tempo. Falta vontade. Esse confronto com o silêncio, que acaba por ser ruidoso quando nos devolve tantos fantasmas que não se foram embora. É preciso dar-lhes nomes. Contextos. Fins. Na maior parte das vezes, falta-nos dar um fim ao que vive em suspenso e, dessa forma, nos alimenta sendo alimento oco. Falta dar um rosto a uma imagem pouco nítida que o nosso sofrimento foi esbatendo, mas que teimosamente persiste. Está lá. Tudo o que está pouco definido insiste em ser sofrimento. Enfrentar o que está esbatido ajuda-nos a seguir em frente. Às vezes, mais vazios, mas francamente mais disponíveis para começar outra vez.

Comecei esta crónica a falar do sabor da pasta de dentes, avisada que estava de que o travo podia ser difícil. Acabo a perceber que a vida nos dá demasiadas pistas que não seguimos. Não estamos atentos. Lembrei-me agora de Nina, a mãe que perdeu um filho e que dizia: “Se não estamos atentos, para quê estar aqui?”

Sem ter pensado nisso, vou ao encontro dela. Esse dissabor que a vida lhe trouxe não tem tamanho, mas fá-la continuar a ver a vida debruçada sobre os detalhes.

O coração ainda bate.

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