Um dilema da ciência do clima: reduzir a poluição do ar vai aquecer o planeta

É um dilema que enfrentamos: temos de nos livrar da poluição atmosférica que rouba milhões de vidas, mas, por outro lado, esta barreira protege o nosso planeta da força do Sol. Um escudo tóxico.

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O smog é visto nas primeiras horas da manhã no Yamuna Bazaar, a 29 de Outubro de 2023, em Nova Deli, na Índia Sanchit Khanna/Hindustan Times via Getty Image

A poluição atmosférica, um flagelo global que mata milhões de pessoas por ano, está a proteger-nos da força total do sol. Livrarmo-nos dela irá acelerar as alterações climáticas. Esta é a conclusão desagradável a que chegaram os cientistas que se debruçaram sobre os resultados da “guerra contra a poluição” da China, que dura há uma década e é altamente eficaz, de acordo com seis especialistas em clima.

O esforço para banir a poluição, causada principalmente pelo dióxido de enxofre (SO2) expelido pelas centrais a carvão, reduziu as emissões de SO2 em cerca de 90% e salvou centenas de milhares de vidas, segundo dados oficiais chineses e estudos de saúde. No entanto, sem o seu escudo tóxico, que dispersa e reflecte a radiação solar, as temperaturas médias da China subiram 0,7 graus Celsius desde 2014, desencadeando ondas de calor mais intensas, de acordo com uma análise da Reuters aos dados meteorológicos e aos cientistas entrevistados.

“É uma espécie de ‘Catch-22’ [um beco sem saída, um impasse], disse Patricia Quinn, química atmosférica da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA (NOAA), falando sobre a limpeza da poluição por enxofre a nível mundial. “Queremos limpar o nosso ar para fins de qualidade do ar, mas, ao fazê-lo, estamos a aumentar o aquecimento...”

A remoção da poluição atmosférica — termo a que os cientistas chamam “unmasking” [desmascaramento, numa tradução literal] — pode ter tido um efeito maior nas temperaturas de algumas cidades industriais chinesas ao longo da última década do que o aquecimento provocado pelos próprios gases com efeito de estufa, afirmaram os cientistas.

Outras zonas do mundo altamente poluídas, como a Índia e o Médio Oriente, registariam saltos semelhantes no aquecimento se seguissem o exemplo da China na limpeza dos céus do dióxido de enxofre e dos seus aerossóis poluentes, alertaram os peritos. Segundo eles, os esforços para melhorar a qualidade do ar podem, na realidade, empurrar o mundo para cenários de aquecimento catastróficos e impactos irreversíveis.

“Os aerossóis estão a mascarar um terço do aquecimento do planeta”, afirmou Paulo Artaxo, físico ambiental brasileiro e principal autor do capítulo sobre poluentes climáticos de curta duração na mais recente ronda de relatórios do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), concluída este ano. “Se adoptarmos tecnologias para reduzir a poluição atmosférica, isso irá acelerar — de forma muito significativa — o aquecimento global a curto prazo.”

Os ministérios do Ambiente da China e da Índia não responderam de imediato a pedidos de comentário sobre os efeitos do processo de neutralização da poluição.

A ligação entre a redução do dióxido de enxofre e o aquecimento foi assinalada pelo IPCC num relatório de 2021 que concluiu que, sem o escudo solar da poluição por SO2, a temperatura média global já teria aumentado 1,6 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais. Este valor não cumpre o objectivo mundial de limitar o aquecimento a 1,5ºC, para além do qual os cientistas prevêem alterações irreversíveis e catastróficas no clima, de acordo com o IPCC, que fixa o nível actual em 1,1ºC.

A análise dos dados chineses feita pela Reuters fornece a imagem mais pormenorizada até à data da forma como este fenómeno se está a desenrolar no mundo real, baseando-se em números anteriormente não-comunicados sobre as alterações das temperaturas e das emissões de SO2 na última década e corroborados por cientistas ambientais.

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Pessoas conduzem na cidade envolta em poluição, Nova Deli, Índia, 02 de novembro de 2023EPA/HARISH TYAGI EPA/HARISH TYAGI

A Reuters entrevistou um total de 12 cientistas sobre o fenómeno do unmasking ao nível mundial, incluindo quatro que foram autores ou revisores de secções sobre poluição atmosférica nos relatórios do IPCC.

Estes cientistas afirmaram que os especialistas em clima não sugerem que o mundo deva abrandar a luta contra a poluição atmosférica, um perigo claro e presente que, segundo a Organização Mundial de Saúde, causa cerca de 7 milhões de mortes prematuras por ano, sobretudo nos países mais pobres. Em vez disso, sublinharam a necessidade de uma acção mais agressiva para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa que provocam o aquecimento do clima, sendo a redução do metano considerada uma das vias mais prometedoras para compensar o desmascaramento da poluição a curto prazo.

XI luta contra o “Airpocalipse”

O Presidente da China, Xi Jinping, comprometeu-se a combater a poluição quando assumiu o poder em 2012, após décadas de queima de carvão que tinham ajudado a transformar a China na “fábrica do mundoÏ. No ano seguinte, com o smog recorde em Pequim a inspirar manchetes nos jornais sobre o “Airpocalypse”, o Governo revelou aquilo a que os cientistas chamaram a versão chinesa do Clean Air Act dos EUA.

No dia 5 de Março de 2014, uma semana depois de Xi ter ido passear durante outro episódio extremo de smog na capital, o Governo declarou oficialmente uma guerra contra a poluição no Congresso Nacional do Povo.

De acordo com as novas regras, as centrais eléctricas e as siderurgias foram obrigadas a mudar para carvão com baixo teor de enxofre. Centenas de fábricas ineficientes foram encerradas e as normas relativas aos combustíveis para veículos foram endurecidas. Embora o carvão continue a ser a maior fonte de energia da China, os purificadores de chaminés eliminam agora a maior parte das emissões de SO2.

As emissões de SO2 da China diminuíram de um pico, em 2006, de quase 26 milhões de toneladas métricas para 20,4 milhões de toneladas em 2013, graças a restrições de emissões mais graduais. Mas com a guerra contra a poluição, essas emissões caíram cerca de 87%, para 2,7 milhões de toneladas métricas até 2021.

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Pessoas com máscaras esperam num cruzamento no Central Business District (CBD) de Pequim, enquanto a cidade está envolta em fumo, na China, a 1 de novembro de 2023 REUTERS/Tingshu Wang

A queda na poluição foi acompanhada por um salto no aquecimento — nos nove anos desde 2014, as temperaturas médias anuais nacionais na China foram de 10,34ºC, mais de 0,7º C em comparação com o período 2001-2010, de acordo com cálculos da Reuters baseados em relatórios meteorológicos anuais publicados pela Administração Meteorológica da China.

As estimativas científicas variam quanto à parte desse aumento que resulta do unmasking versus emissões de gases com efeito de estufa ou variações climáticas naturais como o El Niño.

Os impactos são mais acentuados ao nível local, perto da fonte de poluição. Quase imediatamente, a China registou grandes saltos de aquecimento devido à sua operação de unmasking da poluição perto de regiões industriais pesadas, de acordo com o cientista climático Yangyang Xu, da Texas A&M University, que modela o impacto dos aerossóis no clima.

Xu disse à Reuters que estima que esta acção fez com que as temperaturas perto das cidades de Chongqing e Wuhan, há muito conhecidas como as “fornalhas” da China, aumentassem quase 1ºC desde que as emissões de enxofre atingiram o pico em meados da década de 2000.

Durante as ondas de calor, o efeito de desmascaramento pode ser ainda mais pronunciado. Laura Wilcox, uma cientista climática que estuda os efeitos dos aerossóis na Universidade de Reading, na Grã-Bretanha, disse que uma simulação computadorizada mostrou que o rápido declínio do SO2 na China poderia aumentar as temperaturas em dias de calor extremo até 2ºC.

“Trata-se de grandes diferenças, especialmente num país como a China, onde o calor já é bastante perigoso”, afirmou.

De facto, as ondas de calor na China têm sido particularmente ferozes este ano. Uma cidade na região Noroeste de Xinjiang registou temperaturas de 52,2ºC em Julho, batendo o recorde nacional de 50,3ºC estabelecido em 2015. Pequim também registou uma onda de calor recorde, com temperaturas superiores a 35ºC durante mais de quatro semanas.

Índia e Médio Oriente

Os efeitos do desmascaramento do enxofre são mais pronunciados nos países em desenvolvimento, uma vez que os EUA e a maior parte da Europa limparam os seus céus há décadas. Embora o aumento do calor resultante da limpeza do enxofre seja mais forte ao nível local, os efeitos podem ser sentidos em regiões distantes. Um estudo de 2021, realizado em co-autoria com Xu, concluiu que a diminuição das emissões de aerossóis europeus desde a década de 1980 pode ter alterado os padrões climáticos no Norte da China.

Na Índia, a poluição por enxofre continua a aumentar, tendo praticamente duplicado nas últimas duas décadas, de acordo com cálculos efectuados por investigadores da NOAA com base em dados do Sistema de Dados de Emissões Comunitárias financiado pelos EUA.

Em 2020, quando a poluição caiu a pique devido aos confinamentos devido à covid-19, as temperaturas do solo na Índia foram as oitavas mais quentes de que há registo, 0,29 °C mais altas do que a média de 1981-2010, apesar dos efeitos de arrefecimento do padrão climático La Niña, de acordo com o Departamento Meteorológico da Índia.

A Índia tem como objectivo uma limpeza do ar como a da China e, em 2019, lançou o seu Programa Nacional de Ar Limpo para reduzir a poluição em 40% em mais de 100 cidades até 2026.

Assim que as regiões poluídas da Índia ou do Médio Oriente melhorarem a qualidade do ar, abandonando os combustíveis fósseis e fazendo a transição para fontes de energia verdes, também elas perderão o seu escudo de sulfatos, disseram os cientistas.

“Paramos as actividades antropogénicas por um breve momento e a atmosfera limpa-se muito, muito rapidamente e as temperaturas sobem instantaneamente”, acrescentou Serguei Osipov, um modelador climático da Universidade de Ciência e Tecnologia Rei Abdullah, na Arábia Saudita.

Compensar com metano?

À medida que as implicações do unmasking da poluição se tornam mais evidentes, os especialistas estão a procurar métodos para contrariar o aquecimento associado.

Uma proposta chamada “gestão da radiação solar” prevê a injecção deliberada de aerossóis de enxofre na atmosfera para arrefecer as temperaturas. Mas muitos cientistas receiam que esta abordagem possa ter consequências indesejáveis.

Um plano mais comum é a redução das emissões de metano. Esta é considerada a forma mais rápida de controlar as temperaturas globais, uma vez que os efeitos deste gás na atmosfera duram apenas cerca de uma década, pelo que a redução das emissões agora produziria resultados no espaço de uma década. O dióxido de carbono, por comparação, persiste durante séculos.

Em 2019, o metano tinha causado um aquecimento de cerca de 0,5ºC em comparação com os níveis pré-industriais, de acordo com os dados do IPCC.

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Carros circulam numa rua do Central Business District (CBD) de Pequim enquanto a cidade está envolta em fumo, na China, a 1 de novembro de 2023 REUTERS/Tingshu Wang

Embora mais de 100 países se tenham comprometido a reduzir as emissões de metano em 30% até ao final da década, poucos foram mais longe do que a elaboração de “planos de acção” e “percursos” para cortes. A China — o maior emissor mundial — ainda não publicou o seu plano.

Ao visar o metano, o mundo poderia mitigar o efeito de aquecimento da redução da poluição e potencialmente evitar consequências catastróficas, disse Michael Diamond, um cientista atmosférico da Universidade Estadual da Florida. “Isto não nos condena a ultrapassar os 1,5 graus Celsius se limparmos o ar.”

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