O álibi do choro

Todos os dias chegam-me fotografias e histórias de crianças sorridentes que agora estão mortas. De cidades dizimadas, de percursos interrompidos. As minhas glândulas lacrimais começam a abastecer-se.

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"E, um dia, morre o Matthew Perry. Recebo a notícia ao acordar, em choque" MART PRODUCTION/pexels
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Toda a gente conhece o álibi do choro. Vamos acumulando tristezas, pequenas, minúsculas, ou enormes. Algumas, compreensíveis, outras, ridículas, umas, de todos, outras, só nossas. “A tristeza é sem hora.” E, muitas vezes, também sem explicação.

Um dia, alguém me magoa. Sofro e aguento. Noutro dia, o senhor das mudanças parte a estátua que me deram quando era criança, e que preservo intacta desde então. Fico com a postura séria, finjo que não tem mal. Noutro dia, encontro um postal escrito pela minha avó, e parece que ainda tem o cheiro do perfume dela. Uma secura começa a formar-se na minha garganta. Bebo água.

Noutro dia, vejo uma imagem de uma mulher agarrada a um embrulho branco, a chorar, no meio de uma guerra monstruosa. Sei o que é o embrulho. Paro na imagem que me desliza no feed. Não quero olhar, mas não me mexo. Fico paralisada e sinto uma pontada fortíssima no peito. A imagem fica na minha cabeça, sai, e depois volta a cada hora.

Noutro dia, vejo pela primeira vez o Monstros e Companhia com as minhas filhas, e chega o momento da despedida do Sulley e da Boo. Uma delas pergunta se eles nunca mais se vão ver. Respondo, com a voz a tremelicar.

Noutro dia, vou à Area experimentar um sofá e vejo um ex-namorado com a nova namorada, a escolher candeeiros. Estou sozinha e não lavei o cabelo. Por algum motivo, a imagem dos dois na secção de iluminação gera uma onda de angústia quente que entra pela minha cabeça.

Todos os dias chegam-me fotografias e histórias de crianças sorridentes que agora estão mortas. De cidades dizimadas, de percursos interrompidos. As minhas glândulas lacrimais começam a abastecer-se, mas não desmorono.

Noutro dia, ao telefone com a minha mãe, ela faz uma pergunta aparentemente inofensiva que me dá vontade de chorar, mas aguento.

Noutro dia, vou a guiar e ouço o Zeca Pagodinho a cantar “Naquela Mesa”, sobre a morte do pai, e a falar sobre a mesa vazia. Tento acompanhar, mas estou sem voz.

E, um dia, morre o Matthew Perry. Recebo a notícia ao acordar, em choque. Alguém partilha uma fotografia do Joey a olhar para o cadeirão vazio do Chandler. E, então, o cano do choro é desentupido. Desabo. Começo devagar, a relembrar os bons momentos, e do nada já estou a soluçar. Começo a exagerar e a construir uma linha narrativa altamente emocional: Ele acompanhou-me sempre que tinha amigdalite e que ia para a casa da minha avó. Ele era o meu preferido. Sabia as falas de cor. Em algum lugar, sinto que ele era o meu melhor amigo.

Corro todos os textos emotivos, todos os memes: “Could I BE more sad?” Leio todas as homenagens, cada uma a desobstruir um pouco mais a barragem do choro. Ele esteve comigo: de criança, a adolescente e, até, quando estava a amamentar e não conseguia ver mais nada na televisão.

As pessoas à volta acham desproporcionado. Ninguém consegue compreender este choro todo por causa de um actor de Hollywood. Tento explicar o que ele representava para mim. Mas sei que ele é o meu pretexto. O meu álibi do choro. Por algum motivo, é com ele que tenho esta intimidade. E há uma liberdade em depositar em alguém tão familiar toda a angústia acumulada. E também, apercebo-me, estou a chorar porque é mais um fim. A estátua está partida, o mundo está muito estranho. A tristeza chegou, e parece que nunca mais se vai embora.

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