O Coração Ainda Bate. Os apeadeiros

Inês Meneses escreve sobre viagens que podem ser partidas.

Era um homem muito magro que andava sempre com a máquina fotográfica com ele. Tinha o seu encanto. Nós queremos ver mistério onde ele nem sempre existe. É muito curioso como as mulheres são capazes de seguir esse rasto cheio de falhas a que chamam mistério; e os homens fogem dele: procuram funcionalidade, eficácia, protecção. Por isso, ouvi tantas vezes homens contarem ter sido salvos por mulheres, e menos a história ao contrário. Talvez porque o instinto maternal permite as falhas, muitas vezes com o objectivo da salvação.

Voltemos a ele. Sempre sozinho na noite, sempre com a máquina como aliada. Via-o nos bares, na rua. A máquina pesava-lhe no ombro, mas isso não o parecia incomodar. Um dia começámos a falar. Devo ter sido eu a precipitar essa conversa, farejando o mistério. Uma pessoa nunca sabe o que o outro vê em nós. Reside aí boa parte do encantamento entre duas pessoas.

Eu já vivia em Lisboa, mas ele vivia no Porto. Convencemo-nos de que um encontro mais demorado seria justo para ambos. As pessoas podem falar dias, meses, mas, um dia, ou o encontro acontece ou a magia da conversa esmorece. A não ser que se queira viver na fantasia. Também é justo.

“Vou de boleia”, disse ele. Eu tentava convencê-lo de que o iria buscar à estação. Nas estações pode condensar-se a magia de um primeiro ou último encontro. Pode também ser só a constatação de que não chega a ser amor o que se sente. De que nunca o foi e, assim, a viagem não valer a pena. No fundo, eu queria ir abraçá-lo, a ele e talvez à máquina fotográfica a tiracolo, na estação de tecto alto onde nem sempre nos abrigamos de desgostos, mas aonde é bom ir. Ou chegar até lá e sair, como quem sai do desgosto para viver a vida de novo.

Nas viagens encontrei sempre amparo para a dor, nem que fosse a limpar os olhos em todos os apeadeiros. Sou do tempo em que os apeadeiros faziam parte da minha rotina. Até os apeadeiros parecem paragens de outro século.

Quando ele chegou, já a noite ia longa. Vinha dessa boleia que o trouxera até Lisboa sem me dar a possibilidade de o receber de braços abertos como se os esticasse na estação larga das chegadas que também são partidas.

Conversámos muito. A máquina também viera. Na altura nem sequer me questionei sobre as fotografias que aquele rolo podia conter. Agora, passados tantos anos, tenho a pergunta em mim. O que teria ele fotografado nessa viagem?

O casaco estava pousado no cabide do quarto e no chão havia um papel. O que vi inicialmente não me pareceu razoável. Peguei no papel que parecia um bilhete de comboio, e lá estava: Campanhã com destino a Santa Apolónia. Data daquele mesmo dia. Muitas horas antes.

Nunca o questionei. Era uma mentira, e as mentiras são como viagens sem retorno. O homem da máquina fotográfica mantivera o seu mistério, mas eu não estava interessada em percebê-lo. Ou talvez receasse ir ao fundo dessa verdade.

Fiquei muito tempo a imaginá-lo na viagem que o trouxera em parte até mim, mas que tivera outro propósito inicial. Esse propósito que o fez sair na mesma estação onde o poderia ter esperado, mas que ele preferiu que tivesse destino rápido até outro ponto da cidade onde as pessoas se consumiam a consumir.

A história não é necessariamente triste. Lembrei-me do fotógrafo misterioso que vinha com pressa para chegar a outra paragem. Somo centenas de viagens. Dou valor a cada instante em que da janela do comboio vejo o meu mundo e os rostos das pessoas que nele já habitaram. Viajar também é pôr a nossa vida em perspectiva, e eu valorizo até os apeadeiros.

O coração ainda bate.

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