A cidade-túnel do Hamas: debaixo de Gaza, uma frente de batalha invisível para Israel

O Hamas tem túneis para ataques, contrabando e armazenamento que se estendem por centenas de quilómetros. Os reféns descreveram a rede como “uma teia de aranha”.

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Um dos túneis clandestinos do Hamas que ligam Gaza a Israel, recentemente descobertos Reuters/POOL

O que espera as forças terrestres israelitas em Gaza, dizem fontes da área da segurança contactadas pela Reuters, é uma rede de túneis do Hamas com centenas de quilómetros de comprimento, até 80 metros de profundidade, descrita como "uma teia de aranha" por um refém libertado e como "o Viet Cong multiplicado por 10" por um especialista.

O grupo islamista palestiniano dispõe de diferentes tipos de túneis que serpenteiam sob a faixa costeira arenosa com 360 quilómetros quadrados e também sob suas fronteiras — tanto para lançar ataques contra Israel, mas também para contrabando, dizem fontes no Ocidente e no Médio Oriente.

Os Estados Unidos acreditam que as forças especiais israelitas vão enfrentar por isso um desafio sem precedentes, tendo de combater os militantes do Hamas e, ao mesmo tempo, tentar evitar a morte de reféns mantidos no subsolo.

O secretário norte-americano da Defesa, Lloyd Austin, afirma que a batalha de nove meses que o Iraque travou com o Daesh para reconquistar a cidade de Mossul pode ter sido mais fácil do que aquilo que provavelmente espera os israelitas: "muitos dispositivos explosivos improvisados (IED), muitas armadilhas e uma actividade realmente árdua".

Embora Israel tenha investido fortemente na detecção de túneis — incluindo uma barreira subterrânea equipada com sensores a que chamou de "parede de ferro" —, acredita-se que o Hamas ainda tenha túneis em funcionamento a ligar Gaza ao exterior. Após a última fase de hostilidades em 2021, o líder do Hamas em Gaza, Yehya Al-Sinwar, afirmou: "Começaram a dizer que destruíram 100 quilómetros de túneis do Hamas. Estou a dizer-vos que os túneis que temos na Faixa de Gaza ultrapassam os 500 quilómetros. Mesmo que a sua narrativa seja verdadeira, só destruíram 20% dos túneis".

O testemunho de um refém

Não é possível confirmar a veracidade da declaração de Sinwar, que se pensa estar escondido no subsolo perante a iminência de uma ofensiva terrestre israelita. Mas a estimativa de centenas de quilómetros é amplamente aceite por analistas de segurança internacionais.

Com Israel a controlar totalmente o acesso aéreo e marítimo a Gaza, bem como 59 dos seus 72 quilómetros de fronteiras terrestres — o Egipto controla os restantes —, os túneis constituem uma das poucas formas de que o Hamas dispõe para garantir o seu abastecimento de armas, equipamento e combatentes.

Embora este e outros grupos palestinianos mantenham sigilo total sobre os seus recurso, incluindo os túneis, a refém israelita recentemente libertada Yocheved Lifshitz, de 85 anos, confirmou o que se suspeita: "Parecia uma teia de aranha, muitos, muitos túneis. (...) Andámos quilómetros debaixo do chão".

O Hamas acredita que, perante a superioridade militar israelita no ar e na artilharia, os túneis serão fundamentais para anular parte da vantagem do inimigo em combate, obrigando os soldados israelitas a deslocarem-se em espaços apertados que os combatentes do Hamas conhecem bem.

Um porta-voz militar israelita disse na quinta-feira: "Não vou falar sobre o número de quilómetros de túneis, mas é um número elevado, construído sob escolas e áreas residenciais".

A cidade subterrânea

Fontes de segurança israelitas afirmam que os pesados bombardeamentos aéreos de Israel causaram poucos danos nos túneis, que terão sido utilizados esta semana por comandos navais do Hamas para atacar várias comunidades costeiras israelitas junto a Gaza.

"Apesar de estarmos a atacar maciçamente há dias e dias, a liderança (do Hamas) está praticamente intacta, tal como a capacidade de comando e controlo, a capacidade de tentar lançar contra-ataques", disse Amir Avivi, um general israelita na reserva que pertenceu a uma unidade responsável pela destruição de túneis em Gaza.

"Há uma cidade inteira por baixo de Gaza, com profundidades de 40 a 50 metros. Há bunkers, quartéis-generais e armazéns que, claro, estão ligados a mais de mil pontos de lançamento de rockets". Outras fontes estimam que a rede de túneis pode estar mesmo a 80 metros debaixo do solo.

Uma fonte dos serviços de segurança de um país ocidental disse: "São quilómetros de extensão. São feitos de betão e muito bem feitos. Pensem nos Viet Cong a multiplicar por 10. Eles tiveram anos e muito dinheiro para trabalhar".

Outra fonte de segurança, de um dos países vizinhos de Israel, disse que os túneis do Hamas provenientes do Egipto continuam activos. "A cadeia de abastecimento continua intacta neste momento. A rede que facilita a coordenação é constituída por alguns oficiais militares egípcios. Não é claro se o exército egípcio tem conhecimento deste facto", afirmou.

De acordo com duas fontes de segurança e um comerciante da cidade egípcia de El Arish, na fronteira com Gaza, um pequeno número de túneis de contrabando mais estreitos e profundos continuava a funcionar até há pouco tempo entre o Egipto e o território palestiniano, mas a sua actividade abrandou desde o início da guerra entre Israel e o Hamas.

As autoridades egípcias não responderam de imediato a um pedido de comentário da Reuters. Na quarta-feira, o Presidente egípcio Abdel Fattah al-Sisi disse, durante uma visita a unidades militares no Suez, que o papel do seu exército era proteger as fronteiras egípcias.

Um jogo longo

O Hamas foi criado em Gaza em 1987 e pensa-se que terá começado a escavar túneis em meados da década de 1990, quando Israel concedeu à Organização para a Libertação da Palestina de Yasser Arafat um certo grau de autonomia em Gaza.

A rede de túneis é uma das principais razões pelas quais o Hamas é mais forte em Gaza do que na Cisjordânia ocupada por Israel, onde os colonatos, as bases militares e os dispositivos de controlo israelitas dificultam a entrada de qualquer recurso a partir da fronteira com a Jordânia.

A abertura de túneis tornou-se mais fácil em 2005, quando Israel retirou os seus soldados e colonos de Gaza e quando o Hamas ganhou o poder nas eleições de 2006. Pouco tempo depois, a ala militar do Hamas, as Brigadas Izz el-Deen al-Qassam, capturaram Gilad Shalit e mataram dois outros soldados israelitas, depois de terem escavado 600 metros para invadir a base de Kerem Shalom, do lado israelita da fronteira de Gaza.

Um ano mais tarde, o Hamas lançou um golpe contra a Fatah de Arafat em Gaza, utilizando os túneis nos seus ataques. A estes túneis para fins militares, secretos, juntam-se os dos contrabandistas de Gaza sob a fronteira de Rafah, rumo ao Egipto, menos resguardado de olhares alheios. Tinham cerca de um metro de largura e utilizavam motores de guincho para transportar mercadorias em barris de gasolina vazios puxados ao longo dos túneis.

Um operador de um destes túneis comerciais, Abu Qusay, diz que uma via subterrânea de 800 metros demora entre três a seis meses a escavar e podem render lucros de até 100 mil dólares por dia. O artigo mais rentável são as balas, compradas a um dólar cada no Egipto e vendidas a mais de seis dólares em Gaza. As espingardas Kalashnikov, segundo este contrabandista, custam 800 dólares no Egipto e são vendidas pelo dobro do preço no território palestiniano.

Em 2007, a ala militar terá trazido o seu comandante Mohammed Deif para Gaza através de um túnel proveniente do Egipto. Deif foi o cérebro por detrás do ataque mortal do Hamas a Israel a 7 de Outubro, que matou 1400 pessoas e fez mais de 200 reféns.

Caça ao túnel

O professor Joel Roskin, geomorfólogo e geólogo da Universidade Bar-Ilan de Israel, diz que é difícil mapear a rede de túneis com precisão a partir da superfície ou do espaço, acrescentando que informações altamente confidenciais recolhidas pelos serviços secretos são essenciais para o seu mapeamento.

Entre as unidades de elite encarregadas de entrar no subsolo está o Yahalom, comandos especializados do Corpo de Engenharia de Combate de Israel, conhecidos como "doninhas", que se especializam em encontrar, desobstruir e destruir túneis. No início desta semana, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, visitou os militares do Yahalom, dizendo-lhes: "Eu confio em vós, o povo de Israel confia em vós".

Fontes israelitas dizem que o que os espera é desafiante e que enfrentam um inimigo que se reagrupou e aprendeu com as anteriores operações israelitas de 2014 e 2021. "Vai haver muitas armadilhas. Eles têm armas termobáricas que não tinham em 2021, que são mais letais. E eu acredito que eles adquiriram muitos sistemas de armas antitanque com que vão tentar atingir os nossos tanques e veículos blindados", disse Amnon Sofrin, um antigo comandante da secreta militar israelita. Sofrin, que também foi dirigente da agência de espionagem israelita Mossad, disse que o Hamas também tentará raptar soldados.

Daphne Richemond-Barak, professora da Universidade Reichman de Israel e autora do livro Underground Warfare, afirma que os conflitos na Síria e no Iraque mudaram o paradigma. "O que as Forças Armadas israelitas irão provavelmente enfrentar dentro dos túneis é também toda a experiência e todo o conhecimento que foi adquirido por grupos como o Daesh e que foi (...) transmitido ao Hamas".

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