Escolas, papel e digital: a triste sina das más imitações portuguesas

Ninguém terá esquecido também a triste e aberrante experiência, ao arrepio das críticas de professores e encarregados de educação, da elaboração de provas em suporte digital, no 2.º ano, do 1.º ciclo.

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A Suécia, e não só, com base em inúmeros estudos que evidenciaram a ligação entre ambiente visual e desempenho cognitivo (desde 2000 até 2003, e com realce para as neurociências) decidiu, e de forma veemente, que a escola deveria voltar ao suporte papel, em detrimento do suporte digital que funcionava, há vários anos, em exclusividade. A razão de tal inversão ficou a dever-se ao facto de se registar um défice expressivo na leitura e na escrita dos alunos, uma situação, aliás, reconhecida há vários anos por milhares de professores, nunca ouvidos, em geografias diversas.

Repetem-se as evidências científicas de uma maior actividade cerebral que se repercute beneficamente nas capacidades cognitivas quando o suporte de leitura e de escrita é em papel, o denominado “efeito de superioridade do papel” em relação ao formato digital. Os estudos da Universidade de Valência, em 2019, entre muitos outros, comprovaram igualmente que o suporte digital diminui a “capacidade de concentração”, prejudicando a compreensão, facilita a passividade, “dificulta a memorização” e “favorece a distracção” (pela adição de outros conteúdos, por exemplo).

Em Portugal, e refiro-me no caso concreto ao ensino, a imitação de processos, considerados vantajosos, quando estão prestes a sucumbir ou já sucumbiram, fruto de maus resultados, parece uma triste sina. Na verdade, por imitação, e apesar dos inúmeros estudos, está em desenvolvimento uma experiência-piloto, iniciada há quatro anos, visando a substituição dos manuais escolares (suporte papel) pelo suporte digital, envolvendo-se nessa experiência, quais tristes ratinhos, cerca de 21.000 alunos cujas opiniões críticas, relativamente ao modelo, continuam a ser menorizadas.

Ninguém terá esquecido também a triste e aberrante experiência, ao arrepio das críticas de professores e encarregados de educação, da elaboração de provas em suporte digital, no 2.º ano, do 1.º ciclo. Crianças de 7 anos, ainda em fase de controlar a postura da mão, no intuito de aperfeiçoar a sua caligrafia, são forçadas a desleixá-la, clicando de forma lenta em grafemas para construir as palavras, em vez de as apreenderem como um todo, ao escrevê-las com lápis ou caneta. Para além disso, o facto de existir um corrector ortográfico é mais um exemplo de uma facilidade que se volta contra o próprio. É de presumir que, nestas provas, a avaliação tenha incidido sobre a nova escrita, a de cruz…

O menosprezo pela caligrafia é tão flagrante que se criou o Dia Mundial da Escrita à Mão (23 de Janeiro) receando-se certamente a sua extinção. Saliente-se que os mesmos estudos comprovam que “a escrita à mão estimula e activa o cérebro”, favorecendo “o desenvolvimento de capacidades cognitivas, como a memorização e a expressão de ideias”. A tecnologia, massificada e endeusada, surda a críticas, torna-se não só nociva, mas perigosa porque é imposta. E não se creia que sou fundamentalista, dado que dessa ferramenta me sirvo amiúde e reconheço a miríade de vantagens obtidas, mas pensar criticamente faz parte de qualquer processo e a tecnologia não poderá ser excepção.

A indiferença e a arrogância relativamente ao conhecimento, atitudes que caracterizam a actuação de muitos políticos, muitas vezes em estreita cumplicidade com devoradores do mundo, hábeis no pagamento de favores, vemo-las quotidianamente em palco, quer se trate de alterações climáticas, passando pela economia e saúde, e chegando ao ensino. Por isso já não nos surpreende o discurso de tais senhores, pastoso e vazio de qualquer propósito sério, que, reconheçamos, pode funcionar como estímulo à violência.

Aconteceu com a tinta verde ao ministro do Ambiente que continua a anunciar, com uma leveza intolerável, o abate de 1821 sobreiros (certamente que a escolha do parque eólico poderia ser ainda discutida com a EDP), numa atitude que paradoxalmente colide com ambiente, biodiversidade, alterações climáticas e com o próprio ensino que explicita, num manual do 5.º ano, que “Plantas como o sobreiro, […] são espécies florestais protegidas por lei”. Segundo parece, estará a fazer um trabalho pedagógico com a EDP, em prol do “Verde”…

Também o ministro da Educação, apesar dos estudos feitos, relativamente ao excesso de suporte digital na sala de aula e consequências nefastas evidenciadas, afirmou “estar atento ao problema”, “não andar distraído”, que irá “solicitar estudos” que “avaliarão depois resultados”, como se situações idênticas já não tivessem sido alvo de estudos pondo a nu quanto a escola, às avessas do seu papel, está a pôr em causa o futuro dos alunos.

Quando se tem a perspectiva fundamentada de que crianças e adolescentes apresentam um défice na leitura e na escrita que se associa a excesso de digital, isso significa que crianças e adolescentes não dominam suficientemente a sua língua materna. E é óbvio que não podemos pensar bem, acentuo-o, se não dominarmos a língua através da qual nos exprimimos, a nível funcional e, sobretudo, espiritual.

Dominar bem uma língua implica saber ler, dispor de um mínimo de vocabulário, ser capaz de interpretar e compreender o carácter simbólico da palavra (o mais complexo versus superficial, funcional) aspectos que, por sua vez, irão estimular e exercitar o nosso raciocínio crítico, alimento fundamental para intervirmos em sociedade e não nos deixarmos iludir por oportunistas e demais! Por isso defendemos que se privilegie, na sala de aula, o texto literário, aquele que efectivamente poderá acrescentar vocabulário, incentivar à reflexão e à escrita e educar a sensibilidade. Se é visível o recuo de potencialidades cognitivas, numa aprendizagem que tem primado pela omnipresença da distracção e da facilidade, que infantilizam, exija-se uma intervenção. A Suécia foi disso exemplo.

Urge igualmente, e a propósito de toda esta situação, pôr fim ao conflito entre Ciência e Tecnologia, fomentado, digamo-lo em abono da verdade, pela última que, avessa a críticas e obcecada por um progresso que não vem forçosamente a favor da Humanidade, se tem vindo a sobrepor à Ciência, e também à Ética, não satisfazendo o diálogo contínuo que deveria existir. Basta pensar na atitude do mentor da inteligência Artificial (IA), e Prémio Nobel da Computação (2018), Geoffrey Hinton, que se retirou da Google para poder livremente expor o que pensava sobre o que estava a acontecer. As palavras são suas: “É uma ameaça! Assusta!”, “Parem os trabalhos, até que se entenda bem se é possível controlar a IA!”.

No que ao ensino diz respeito, já se anunciam intermináveis oportunidades de tarefas facilitadas, no uso da ferramenta ChatGPT (realização de ensaios, escrita de textos literários, traduções, notícias, resumos) tais actos de magia, solicitados e logo cumpridos, para além de muitas outras situações, igualmente assustadoras, que Hinton também salienta, como a inundação de notícias e vídeos falsos ou o acentuar da desigualdade social, com a riqueza a inchar os mais ricos e a empobrecer os que trabalham.

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