Crise climática pode deixar a cerveja europeia menos saborosa e mais cara

A produção de lúpulo na Europa pode sofrer, até 2050, uma redução considerável, tanto na quantidade como na qualidade, sugere estudo. A “culpa” é da subida das temperaturas e da ocorrência de secas.

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Estima-se que as regiões europeias onde o lúpulo é cultivado sofram quebras significativas com secas e ondas de calor Nelson Garrido
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É o lúpulo que confere à cerveja um sabor e um aroma característicos – e a produção desse ingrediente na Europa pode sofrer, até 2050, uma redução considerável, devido às alterações climáticas, sugere um estudo publicado esta terça-feira na revista científica Nature Communications.

“Se não forem tomadas medidas de adaptação [climática] na indústria do lúpulo, a produção cairá e, portanto, a disponibilidade de cervejas de alta qualidade para os consumidores será reduzida”, afirma ao PÚBLICO Martin Mozny, primeiro autor do estudo e investigador no Global Change Research Institute da Academia Checa de Ciências.

Estima-se que as regiões europeias onde o lúpulo é cultivado sofram não só uma quebra de 4 a 18% na produção, mas também uma redução de 20 a 31% no teor de ácidos alfa.

“Dado que o cultivo de lúpulos aromáticos de alta qualidade está restrito a regiões relativamente pequenas com condições ambientais adequadas, existe um sério risco de que grande parte da produção seja afectada por ondas de calor ou secas extremas, que provavelmente aumentarão com as alterações climáticas globais”, lê-se no artigo científico.

O lúpulo contém óleos essenciais e compostos chamados ácidos alfa, que não só dão à cerveja aquele travo amargo, mas também interferem na qualidade da bebida. Juntamente com a água, o fermento e o malte de cevada, é considerado um ingrediente indispensável para uma boa cerveja.

Projectar cenários

Os cientistas criaram um modelo que pretende mostrar como a temperatura e a chuva controlam não só a qualidade, mas também o desenvolvimento do lúpulo na Europa entre 1970 e 2050.

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O lúpulo contém compostos chamados ácidos alfa que não só dão à cerveja aquele travo amargo, mas também interferem com a qualidade da bebida RitaE/Pixabay

Para “alimentar” o modelo matemático, os autores recolheram dados sobre o rendimento destes ingredientes durante o período entre 1971 e 2018, na área geográfica correspondente a 90% das zonas de cultivo de lúpulo de cerveja na Alemanha, República Checa e Eslovénia. Depois, acrescentaram simulações do clima no futuro (até 2050) a este conjunto de informação.

A parte mais difícil foi obter bons dados para análise, isto sem falar no consentimento para usá-los. Infelizmente, não conseguimos obter séries suficientemente longas de alguns países, incluindo Portugal​​”, afirma Martin Mozny, numa resposta enviada por e-mail.

Os cientistas descobriram que o lúpulo está a amadurecer 20 dias mais cedo – em comparação com o que ocorria no período entre 1971 e 1994. A produção de lúpulo também diminuiu quase 0,2 toneladas por hectare por ano e o teor de ácido alfa caiu 0,6% relativamente ao mesmo período.

Os efeitos das alterações climáticas são muito semelhantes em todas as regiões produtoras de lúpulo. Apenas a magnitude dos impactos difere. Fomos desagradavelmente surpreendidos com a rapidez e o dinamismo das mudanças, com impactos superiores ao esperado”, diz o cientista.

Os resultados obtidos com este modelo sugerem que regiões de cultivo mais a sul poderão ser as mais afectadas até 2050 – é o caso de Tettnang, na Alemanha, e Celje, Eslovénia. Com a subida das temperaturas, e a maior ocorrência de episódios de seca hidrológica, estima-se que haja uma queda na produção e na qualidade dos ingredientes da cerveja.

Adaptações na agricultura

Os autores referem no estudo que os agricultores de lúpulo podem – e devem – reagir à crise climática transferindo as plantações de lúpulo para altitudes mais elevadas e locais de vale com lençóis freáticos mais altos. Parte deles já estão a adoptar estas ou outras estratégias, como a construção de sistemas de irrigação, a mudança de orientação e espaçamento das linhas de cultivo, ou até mesmo desenvolvendo variedades mais resistentes.

A utilização de uma agricultura climaticamente inteligente pode não só auxiliar os próprios produtores de lúpulo, mas também ajudar a manter a sustentabilidade da produção. Especialmente nos países da Europa Central, existe uma cultura cervejeira e muitas tradições à volta da bebida. Se o cultivo do lúpulo não for adaptado, desaparecerá e com ele a cultura da cerveja”, alerta Martin Mozny.

Todas estas mudanças implicam custos, que podem reflectir-se no preço final da bebida para o consumidor. Aliás, só o impacto previsto nas quebras de produção, sem a adopção de nenhuma medida, pode ter um reflexo no custo do produto. Para continuar a produzir cerveja de excelência, as práticas tradicionais de produção de lúpulo vão ter mesmo de abraçar medidas de adaptação, avisam os autores.

Além de ser a bebida alcoólica mais popular do mundo, a cerveja é a terceira bebida mais consumida a nível mundial, ficando apenas atrás da água e do chá, refere uma nota de imprensa da Nature Communications.

Notícia actualizada dia 11/10/23 às 11h50: foram acrescentadas citações do primeiro autor do estudo.

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