O Coração Ainda Bate. A cama malfeita

Inês Meneses escreve sobre a questão territorial entre as mulheres.

As mulheres não são todas iguais. Umas magoam-nos só com o olhar, outras, com as palavras, já nos abraçam. Mas porque persiste esta picardia constante que não vejo nos homens? São as mulheres desde sempre mais territoriais? Como arrumam os homens os seus sentimentos, quando teimamos em dizer que são imaturos? Onde está neles essa inveja pequenina e maldosa que nós, mulheres, nem sempre sabemos encaixar?

As mulheres são complacentes umas com as outras, sobretudo se não se sentirem ofuscadas. Há um limite, uma faixa amarela que está instalada num território sem dono, mas que nós, sistematicamente, dizemos que é nosso. Poderia dizer que essa competição radica na conquista pela validação masculina, mas não estaria certa. Ou não estaria totalmente correcta. A competição é cultural e vem do tempo em que éramos educadas para nunca sairmos de casa sem fazer a cama ou não nos apresentarmos perante os outros como alguém que não cozinha. Uma mulher sem estas "valências" podia ser apoucada em família ou mesmo entre amigos. Aquela que não está completa. Felizmente, estou em crer, nenhuma cama por fazer nos define. Cozinhar ou passar a ferro são tarefas irrelevantes quando lutamos pela sobrevivência todos os dias. Talvez as mulheres, por terem de estar à frente em muito mais frentes do que os homens, se tenham tornado também mais competitivas. Mas há mais.

O nosso grau de satisfação na vida é proporcional não só ao bem-estar próprio, mas ao que geramos nos outros.

Evidentemente que poderemos olhar para mulheres de aparente sucesso que continuam a ser cruéis e maldosas com outras, mas aí teríamos de perceber as suas ambições. E nesse caso, o limite está por definir. O nível de ambição pode ter um impacto igual ao da decepção. E fica claro no olhar. No olhar que se lança às outras mulheres como se a comparação fosse a nossa baliza.

Diria a muitas mulheres, se pudesse, que sei que o olhar que elas lançam a outras mulheres é feio. É notoriamente competitivo e traz uma quase raiva acrescida. As mulheres toleram o sucesso das outras se forem mesmo muito amigas. Se demonstrarmos até uma espécie de inferioridade por sabermos que assim estará tudo bem. Muitas mulheres admiráveis anulam-se perante as outras para evitarem problemas. Fico entristecida por esta questão ainda estar em cima da mesa (onde jantamos todas juntas). Fico ainda mais desiludida quando vejo um discurso falso de união. Ainda estamos longe disso. Lutamos globalmente pela conquista de muitos direitos, mas somos as primeiras a atirar as outras para um patamar nem sempre aceitável. É um ringue onde evito estar porque essa inveja pequenina desgasta, mói, retira a alegria do espontâneo.

Amo várias amigas, admiro outras. Evito algumas por perceber uma crispação por explicar. Falei da questão cultural e terei de falar da infância, mas da infância de cada uma: daquilo que projectaram para nós, das nossas próprias projecções. Nem sempre pudemos tocar no alcance dessas projecções. Mas a vida é bastante mais do que isso. A falha é um motor de continuidade.

Às vezes, há também pequenos focos de discriminação muito antigos que explicam dissabores do presente: se não arrumarmos bem aquilo que vemos como perdas, vamos estar constantemente numa desvantagem que só nós sentimos, mas que os outros detectam.

O olhar de uma mulher sobre a outra identifica-a. Ainda somos assim. Por isso terei de dizer que se os homens são imaturos, as mulheres têm também assuntos - vários - por processar e, mais importante ainda, por aceitar. Não é a cama malfeita.

Precisamos de acolher as outras sem as julgar, sem as temer, sem mais comparações que nos destroem a auto-estima, que, nalguns casos, veio já combalida do recreio da escola.

Há muito que repito isto: as pessoas deste tempo só toleram as suas pessoas. As pessoas perdoam tudo ao seu pequeno círculo, mas são implacáveis com as outras: as outras não se devem exibir, falsear cenários, inventar ou demonstrar talentos vários. O mundo está feito para pequenos mundos. Falta ver mais (além).

Penso que devíamos reflectir a sério sobre isto.

O coração ainda bate.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários