Uma questão coimbrã

Uma das expectativas dos eleitores nas últimas autárquicas era a de que a mudança de presidente de câmara levasse a um “levantamento social e económico”. Isso não foi minimamente conseguido.

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No passado dia 15 de setembro, Dia do Serviço Nacional de Saúde, ouvimos o presidente da Câmara de Coimbra, José Manuel Silva, que é médico e universitário, afirmar que a Rainha Dona Leonor é “a verdadeira fundadora do Serviço Nacional de Saúde”.

Esta afirmação, que não mereceu reparo, revela duas coisas: que as declarações do presidente da Câmara de Coimbra não têm qualquer valor e que a própria cidade, embrenhada num labirinto político, não se empenha em defender os seus pergaminhos.

Pode-se considerar estranho que um médico e professor universitário profira tais declarações, até porque na criação do Serviço Nacional de Saúde esteve, para além do político António Arnaut, um médico, o professor Mário Mendes, de que decerto terá ouvido falar. Foram figuras marcantes, associadas a Coimbra, pelo contributo decisivo que deram na construção do Portugal democrático, concretamente através da criação do Serviço Nacional de Saúde, merecendo a defesa da cidade a que orgulhosamente pertenceram.

Também o presidente José Manuel Silva, ex-professor na Universidade de Coimbra, deveria saber distinguir – e se o não sabe, poderia pedir ajuda a conceituados pares da universidade, especialistas na área – o que foi a criação das Misericórdias e, consequentemente, o absurdo da sua afirmação.

Mas o presidente José Manuel Silva, que é um verdadeiro erro de casting como autarca, o que pretende permanentemente é ficar bem na fotografia, e por isso a sua afirmação não passou de uma boutade para satisfação de alguns dos presentes, esquecendo o cargo de presidente da Câmara de Coimbra.

Este episódio, um entre vários que são fato que veste com frequência, leva a perguntar como aparece uma personagem como esta a presidir aos destinos de Coimbra e, sobretudo, como é a atual Coimbra política e como se perspetivam as futuras eleições autárquicas.

É bom relembrar que o presidente José Manuel Silva foi vereador no anterior mandato presidido por Manuel Machado e que se distinguiu pelas “malandrices” que fazia nas sessões da câmara. Claro que aquele comportamento lhe deu alguma notoriedade, o que somado ao desgaste evidente da gestão de Manuel Machado o levou a assumir, apoiado por alguns notáveis que entretanto se demarcaram da sua postura, a ambição de ser presidente da câmara.

Esta ambição e as questões internas do PSD local levaram o então presidente do PSD, o dr. Rui Rio, a convidá-lo para encabeçar a lista daquele partido. Convite que foi aceite, para desconforto do PSD local, com a agravante de que a lista, por vontade do candidato, para além do PSD integrou o CDS-PP, o Nós, Ciddãos, o PPM, a Aliança, o RIR e o Volt Portugal.

Esta configuração nunca vista, reveladora da fragilidade do PSD local, partido com pergaminhos na gestão do município e com militantes e dirigentes partidários de relevância nacional, se permitiu uma vitória levou a duas derrotas significativas, que hoje são por demais evidentes na política local: a derrota do PSD; e a derrota do PS.

E isto traz-nos à atual situação política em Coimbra, caracterizada por um vazio político-partidário e uma total ausência dum projeto de futuro para a cidade.

Se é difícil perceber como é que o PSD se vai “livrar” desta confusão para que foi arrastado e a que está irremediavelmente preso, por seu lado o PS não tem mostrado capacidade para superar o trauma da derrota que sofreu e de apresentar ideias e protagonistas capazes de entusiasmar os eleitores e de levar a uma vitória nas autárquicas que se aproximam.

Hoje vive-se, por aqui, uma situação de evidente constrangimento político-partidário, característico duma cidade que se tem vindo a afundar no contexto nacional e que acabou por se tornar, a nível político, numa ilha a nível regional, ensimesmada, incapaz de dialogar com quer que seja, vivendo um preocupante estado de entropia.

Lembre-se que uma das expectativas dos eleitores nas últimas autárquicas, em que a abstenção foi a grande vencedora, era a de que a mudança de presidente de câmara levasse a um “levantamento social e económico” que reposicionasse a cidade num patamar superior, a que acredita ter direito e para o qual tem mérito. E isso não foi minimamente conseguido.

Diga-se que esta avaliação é sobretudo política, porque a cidade tem, apesar de tudo, vindo a desenvolver-se, só que, com muito sofrimento e lentidão, havendo a convicção de que um maior e mais intenso desenvolvimento carece de novas e motivadoras políticas municipais, de que o atual executivo municipal, como tem vindo a mostrar, é absolutamente incapaz de apresentar.

Obviamente que, como a generalidade das cidades, Coimbra, uma cidade eminentemente universitária e de serviços, enfrenta muitos desafios e tem muitos problemas pela frente, mas há uma importante e inescapável realidade, uma verdadeira questão coimbrã: a fragilidade político-partidária reinante.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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