Serviço de urgência para animais marinhos já bateu recorde este ano com 400 “utentes”

Estrutura pertencente à Universidade de Aveiro abriu em 2016 e, além da vertente de reabilitação, tem também uma componente de investigação e conservação das espécies.

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Centro de recuperação de animais marinhos, em Ílhavo, foi criado em 2016 ADRIANO MIRANDA / PUBLICO
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O cenário daquela manhã não espelhava, em nada, aquela que tem sido a realidade vivida este ano no Centro de Reabilitação de Animais Marinhos, localizado na Gafanha da Nazaré, em Ílhavo, paredes-meias com o Porto de Aveiro. Além das duas tordas-mergulheiras que começam a dar sinais de poderem vir a ser libertadas brevemente, nos tanques da unidade de cuidados intensivos (UCI) estavam apenas seis gaivotas, quase todas “com sintomas de intoxicação por biotoxinas”.

Mas os números não enganam e a verdade é que esta unidade do Ecomare – Laboratório para a Inovação e Sustentabilidade dos Recursos Biológicos Marinhos, pertencente à Universidade de Aveiro, já admitiu este ano mais de 400 animais para reabilitação. Os números registados até ao dia 19 de Setembro (405 animais) já ultrapassaram o total de 2022 (396), assim como os dos anos anteriores. “Este ano, estamos a bater recordes de animais desde que o Ecomare abriu”, admitia Catarina Eira, directora da unidade criada em 2016.

Para este aumento muito contribuíram “as tempestades de Janeiro”. “Tanto nas semanas antes do foco da tempestade, como nas semanas a seguir, houve uma entrada fora do normal de animais”, revela a também investigadora do Cesam (Centro de Estudos do Ambiente e do Mar), notando que os “eventos extremos” ao nível das condições do tempo e de mar são sempre mais críticos.

E como é que os animais chegam a esta unidade que se dedica à reabilitação e devolução à natureza de animais marinhos (aves, répteis e mamíferos) e, simultaneamente, ao desenvolvimento de investigação científica nas áreas de ecologia populacional e saúde animal? “Os mamíferos marinhos e as tartarugas, somos nós que vamos recolher, porque são animais que precisam de veículos e cuidados adequados”, introduz Catarina Eira.

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“No caso das aves marinhas, as coisas já se complicam um pouco porque é uma quantidade enorme de animais e não podemos estar a deslocar-nos em toda a nossa área de cobertura para os ir recolher”, prossegue, especificando que, para estes casos, contam com o apoio da Polícia Marítima, dos vigilantes da natureza, da GNR e também da PSP.

Nem de propósito. Poucos minutos depois há dois elementos do Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (Sepna) da GNR de Cantanhede que batem à porta. O cabo Hermes Jesus e o guarda-principal José Freitas trazem, numa caixa transportadora, uma gaivota que tinha sido recolhida, na noite anterior, na praia de Mira. “Não voava e aparentava estar debilitada”, referem, antes de entregar a ave à veterinária e à enfermeira veterinária de serviço.

Torda-mergulheira com penas renovadas volta ao mar

À semelhança do que acontece num hospital, a ala do Centro de Pesquisa e Reabilitação de Animais Marinhos reservada ao tratamento dos animais – a unidade tem uma outra área mais dedicada à investigação – está organizada de forma sequencial, começando pela sala de triagem.

“É aqui que se faz a primeira avaliação para perceber qual será a causa de entrada; se for visível o problema, pode-se iniciar logo o tratamento. Se não, vamos ter de passar para uma sala mais especializada, onde já tem uma série de meios de diagnóstico, nomeadamente raio X, endoscópio, ecógrafo”, explica a investigadora, notando que estes equipamentos têm sido cruciais na capacidade de o centro dar resposta aos animais. “Uma endoscopia permite-nos perceber se o anzol está cravado ou não, se existem outros itens no estômago, e pode-se tentar fazer logo a remoção”, especifica.

Unidade de reabilitação também é um centro de investigação ADRIANO MIRANDA / PUBLICO
Unidade de reabilitação também é um centro de investigação ADRIANO MIRANDA / PUBLICO
Unidade de reabilitação também é um centro de investigação ADRIANO MIRANDA / PUBLICO
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Unidade de reabilitação também é um centro de investigação ADRIANO MIRANDA / PUBLICO

Na porta ao lado, a sala é dedicada à lavagem dos animais e assume especial relevância de cada vez que ali aparece um exemplar oleado, “vítima de um derrame de petróleo ou de outros produtos gordurosos”. “Esta lavagem é feita nestes tanques próprios, com saída de água contaminada adequada, e o banho tem de ser feito com protecção. Só para ter uma ideia: para cada animal que tenha de ser lavado, são precisas, no mínimo, três pessoas para o manipular”, repara a directora.

“Quando é um indivíduo de vez em quando, não há problema, mas se tivermos um derrame de petróleo de grande impacto, podemos estar a falar de dezenas e dezenas de animais”, observa, recordando o episódio do Prestige (um navio que transportava 77 mil toneladas de fuelóleo e foi apanhado numa tempestade ao largo do cabo Finisterra, na Galiza, levando àquele que, até hoje, constitui o maior desastre ambiental na história tanto de Espanha como de Portugal, com 63 mil toneladas de fuelóleo derramadas ao longo de 2900 quilómetros da costa).

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Plásticos encontrados no estômago de um cachalote que acabou por morrer ADRIANO MIRANDA / PUBLICO?

Além destas salas e laboratórios, a reabilitação de animais também é feita nos tanques instalados no exterior. “Temos quatro de maiores dimensões e, na UCI, o número vai variando, pois podemos tê-los activos ou inactivos consoante o número e até o tipo de animais que temos em tratamento”, enquadra Catarina Eira. Destaque, também, para o tanque principal – que naquela manhã estava vazio, pronto para ser alvo de trabalhos de conservação –, onde decorre “a fase final de recuperação”. “A nossa maior alegria é que os animais sejam libertados. Por muita ligação que criemos com os animais, o que queremos sempre é devolvê-los à natureza”, testemunha a directora.

É o que vai acontecer nos próximos dias com uma das duas tordas-mergulheiras que ali estão há vários meses, protagonizando a estadia mais prolongada no centro deste ano. “Entraram com as penas muito danificadas, portanto, tiveram que fazer todo o processo de renovação aqui”, desvenda a responsável pela equipa que está prestes a ir lançar uma destas aves no mar e a terminar mais uma história com um final feliz. Nem sempre assim acontece, é um facto, sendo a taxa de sucesso muito variável. “Depende muito dos grupos. As tartarugas e as focas têm uma taxa de sucesso maior, porque são mais resilientes”, explica Catarina Eira.

Catarina Eira, responsável pelo Centro de Recuperação de Animais Marinhos, em Ílhavo ADRIANO MIRANDA / PUBLICO?
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Catarina Eira, responsável pelo Centro de Recuperação de Animais Marinhos, em Ílhavo ADRIANO MIRANDA / PUBLICO?

Cada animal que ali chega passa a ser identificado por um código numérico, à excepção das tartarugas quando começam a ser já “quatro ou cinco”. Nesses casos, passam a ser conhecidas pelo nome da praia onde são encontradas ou pelo nome da embarcação que as recolhe, desvenda a directora do centro.

Caso dos papagaios-do-mar atraiu voluntários

Esta unidade do Ecomare conta com uma equipa fixa de cerca de 15 elementos. A estes juntam-se “os alunos de mestrado e de doutoramento, que ao longo do ano vão fazendo aqui trabalhos”, refere a directora da unidade, que também tem conseguido, sempre que é necessário, mobilizar voluntários (oriundos da UA). “Ainda no início do ano, com o caso dos papagaios-do-mar, precisámos de ajuda e vários alunos de Biologia disseram presente”, destaca, lembrando que aquela casa não pode fechar para férias, nem em períodos festivos, como o Natal e o Ano Novo.

Conforme já se referiu, o dia-a-dia daquele centro também fica marcado pela investigação e pesquisa. “Temos uma parte relacionada com a avaliação das abundâncias dos mamíferos marinhos e das aves e, por causa disso, fazemos censos de avião, para tentarmos contar quantos avistamentos de indivíduos há e depois conseguir produzir um valor de abundância”, especifica a directora. Referência, também, para alguns projectos com escolas da região, “relacionados com a literacia do oceano” e nos quais os mais novos são sensibilizados para “os problemas que estas espécies de fauna enfrentam” (ver caixa).

A pensar nessas visitas de estudo, há uma galeria onde é apresentado diverso material expositivo, desde painéis informativos a esqueletos e ossadas de animais marinhos. “Pertencem a animais que arrojaram já mortos na nossa costa e nós fizemos as necropsias para perceber a causa de morte e, ao mesmo tempo, recolher dados para os nossos estudos”, enquadra Catarina Eira, exemplificando: “Se eu quiser saber que quantidade de mercúrio existe na população de golfinho-comum, não posso ir amostrar 30 golfinhos; temos de aproveitar o mais possível destes animais que chegam já mortos à costa para conseguirmos amostrar tudo o que for possível.”

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