O estudante negro

Reivindicar uma humanidade abstrata e incolor, pretender eliminar diferenças que se legitimam socialmente ou censurar gritos de afirmação essenciais em nome de uma utópica mestiçagem é uma hipocrisia.

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Em setembro de 1934, na abertura do ano letivo, o martiniquense Aimé Césaire junta, em Paris, um grupo de jovens negros para o lançamento do primeiro número da publicação “L’Etúdiant Noir”, proclamando: “Deixámos de ser estudantes da Martinica, de Guadalupe, da Guiana, de África e de Madagáscar, e passámos a ser um único estudante negro. Deixámos de viver no vazio, passámos a ser uma revista corporativa e de combate, com o objetivo de acabar com a tribalização e o sistema de clãs em vigor no bairro [periferia].

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O poeta Aimé Césaire foi uma das vozes principais na luta contra o colonialismo francês Vincent Kessler/Reuters

É neste contexto estudantil que nasce o termo negritude – nove décadas depois de ser pensado, ainda causa ao ouvinte apreensão: “É negro? É preto? É de cor? É racializado?” Eis-nos perante o ovo e a galinha, numa discussão que, se feita sem fluidez, conduzirá a polarizações racistas e divisórias, levando-nos a defender movimentos de afirmação de uma "raça" em detrimento de outra.

Muitos intelectuais, aquando da introdução do termo negritude nos circuitos literários, julgaram estar perante um movimento racista. Confrontados com o termo negritude e com o movimento ao qual deu origem, depressa se intrigaram com tal ousadia, marginalizando a sua importância na formação de uma identidade que já existia antes mesmo de qualquer estudo e teorização acerca da mesma.

Introduzido nos circuitos literários europeus, sobretudo franceses, por volta de 1933-1935 por Aimé Cesaire, encontrou os seus tematizadores mais fortes em Leopold Sédar Senghor e Léon Damas, entre outros, tendo Senghor desenvolvido vários estudos e monografias acerca deste movimento, tornando-o literário, político, filosófico, cultural e histórico.

O termo negritude, de origem francófona, deriva do latim niger, ris com o sufixo itude, sendo a sua utilização alvo de discussões por parte dos seus principais teorizadores. Enredados que estavam na precisão do vocábulo, os termos négritude, nègrerie, ou nigrite foram alvo de discussão, tendo, no entanto, o termo african personality sido adaptado pelos intelectuais anglófonos que o julgaram mais preciso.

Ainda assim, noventa anos volvidos, permanece a questão: como chamar negro ao preto? Ou racializado à pessoa de cor?

Reivindicar uma humanidade abstrata e incolor, pretender eliminar diferenças culturais e raciais quando elas próprias existem e se legitimam socialmente, censurar gritos de afirmação essenciais para a tomada de consciência de um coletivo em nome de uma utópica mestiçagem é uma hipocrisia.

As margens do rio Sena testemunharam a saudade e as angústias daqueles que, segundo Cesaire, “não inventaram nem a pólvora/ nem a bússola”.

Nas palavras de Senghor, “a negritude é filha de uma raça, de uma geografia e de uma história que explicam as facetas do pensar e do agir de cada grupo humano.” A negritude funciona como uma tábua de valores do mundo negro, é a tomada de consciência de uma pertença negra, basilar para a afirmação ativa do negro no mundo, pretendendo-se com isso, não a criação de um movimento fechado em quadrados fronteiriços, mas um movimento à escala universal. A negritude é o ser-aí do negro, é a relação entre ele e o mundo.

Se para Heidegger a linguagem é a casa do ser, para Senghor a negritude é a casa do negro, um estar-no-mundo por meio de um corpo, negro, que faz da negritude, antes de mais, uma pertença, isto é, o negro não é somente negro, ele é enquanto negro. E é isso que permite estabelecer a diferença entre a consciência racial de um coletivo, gerada pela consciência histórica, e o racismo. Só compreendendo a distinção feita pelo nigeriano Akinde, poderemos compreender do que falamos quando falamos de movimento da negritude.

Esta tomada de consciência surge pelo posicionamento do negro perante si mesmo e o negro perante o outro. Este outro é aquele que está diante de mim. O eu está perante o outro; o negro perante o branco. Cabe à humanidade despir os farrapos ainda visíveis do racismo, da intolerância, do domínio do branco sobre o negro e refazer a História numa linguagem universal. Tal tarefa não é fácil, ela obriga a uma revolução das mentalidades.

Na revolução das mentalidades o negro tem um papel de charneira, o de dar o primeiro grito, o de entoar a liberdade, proclamar a dignidade e construir a fraternidade. E ainda que se por instantes ela invoque a raça em defesa dos direitos da pessoa negra – african personality –, não podemos de modo algum chamar racista a este movimento, mas sim necessária afirmação étnica ou, como intitulou Jean-Paul Sartre, racismo não racista, que mais não é do que uma afirmação necessária de identidade, que faz da raça não uma génese humana, mas uma construção cultural, histórica e antropológica, resultado de uma consciência situada no mundo, concretizada geograficamente, que se manifesta no coletivo e no individual segundo as suas experiências. Se, por um lado, formamos o género humano, por outro lado, somos formados por condicionamentos sociais que cultura agudiza.

Lembrem-se disto nestes vossos primeiros dias de aulas, especialmente quando ao vosso lado se sentar um estudante negro.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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