O Coração Ainda Bate. Na véspera

Inês Meneses escreve sobre o prazer da conversa à mesa.

Há mais de 40 anos chamavam-me pisco por comer tão pouco. Ao contrário do pássaro com o mesmo nome, não me ficava por bagas ou passas, mas tudo seguia com parcimónia. Coisas poucas, escolha criteriosa. Temia as segundas-feiras da pescada ou do bacalhau cozidos. Engolia em seco antes de ter pela frente um arroz de grelos ou de tomate. Muitos de nós (quase todos?) não pensávamos antes de nos alimentarmos. Os miúdos, sem a consciência ou a sensatez por companhia, comem sem critério, e o critério, convenhamos, vem a revelar-se fundamental para a vida em adulto mesmo que nos esqueçamos e deixemos muitas vezes de lado o que afinal importa.

Gosto muito de comida. Não há nada de novo em dizer isto, mas, na verdade, troco quase tudo pela ideia de uma refeição feliz. Ou o esboço de uma refeição. Não falo de panquecas ou mirtilos. Falo de arrozes disto e daquilo, vinhos agora proibidos pela alegada Organização Mundial da Vigilância, peixes crus ou assados, carne pouca mas boa, a baixa temperatura ou a ferver. Tudo vem à nossa mesa e o critério deve ser o nosso galheteiro.

A comida: a ela junto conversas, amigos, amores, toalhas bonitas, flores em jarras, água em copos, música boa. Isto começou muito antes do Instagram. Já todos tínhamos um prazer enorme antes de fotografarmos o que comemos, não é verdade? Ou será que a mesa é posta para que os outros a vejam?

Deixem-me falar do que está para além da mesa: as pessoas que se sentam à sua volta e o que nasce a partir daí. Às vezes, é certo, não nasce nada para além de alimentarmos a rotina e os seus horários – sentimo-nos vivos quando conseguimos cumprir metas. Fazer uma refeição, estarmos à mesa e não termos angústias para o jantar é tanto. Já agora, sobretudo entre amigos, a angústia (para lembrar Sttau Monteiro) pode vir para jantar. É então que a comida se torna a amante ocasional, a amiga de sempre, a toalha que se põe e tira sem deixar rasto.

Nas refeições, e aconteceu-me há dias entre pão, queijo, presunto e vinho na mesa, tece-se uma conversa entre códigos surpreendentes: pode ser a faca que se pediu emprestada, o vinho que decidimos partilhar com o estranho atrás de nós, o brinde que elevámos às nossas expectativas. Tudo se conjuga para que algo memorável possa acontecer. Acho que só não acontece quando não queremos.

Naquela noite, entre nós e o que à mesa se apresentava, também eu me adiantei com uma pergunta: qual era o propósito de vida das pessoas que ali estavam? A pergunta embalada entre copos cheios acabou por se tornar muito mais relevante do que o facto de estarmos ali sentados e bem vestidos. Todos, sem querer, descemos a uma qualquer profundidade que nem sabíamos que ali morava naquela noite. Os mistérios que vêm beliscados pela curiosidade de alguém. E todos, entre gargalhadas para disfarçar o espanto, fomos dizendo palavras como, “família”, “partilhar”, “dar e receber”, e a cadência dos copos acompanhou a das confissões. Eu já teria bebido para lá da medida medicamente aconselhada às mulheres, mas o que ali se trocou era muito mais importante do que um despertar mais áspero e zonzo. Os que ali tinham estado naquela noite sabiam que o que acabara de se deixar à mesa era para guardar e trazer para a rotina.

Muito do que dizemos entre amigos deve ser incorporado no nosso dia-a-dia. Os amigos são uma fonte que jorra vida e que juntamos à nossa. Os amigos dão-nos sempre, sem querer, a sabedoria que pensávamos não ter, mas que estava ali à distância de um brinde.

Teria uma casa maior para receber os amigos, cozinhar para eles, pôr a mesa com a toalha a cheirar a lavado, as flores ainda revigoradas do orvalho da noite, e depois, os tachos empoleirados, a louça suja em castelo. O acordar do dia seguinte que já vem somado ao que ouvimos na véspera.

Eu sei que a sociedade nos vigia os exageros. Eu vigio as pessoas que temem o exagero. Não acredito na arte ou na sabedoria que nascem da contrição.

O coração ainda bate.

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