A nossa necessidade de consolo

Pode dizer-se que estamos — ou tudo indica que deveríamos estar — a transitar de uma era refinada para uma era integral, de uma idade do sangue para uma idade da seiva.

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Somos seres ávidos; não se percebe se por puro apetite, se para compensar alguma angústia. Certo é que estamos sempre um pouco insatisfeitos, como se tivesse ficado alguma coisa por comer. Os estudos sobre a alimentação humana começaram nos anos 1930 e, passado um arco de vida, na última década foi possível chegar a conclusões sólidas sobre que alimentos promovem a saúde humana. A Organização Mundial de Saúde (OMS), a Faculdade de Saúde Pública de Harvard e a Comissão Eat-Lancet, entre a larga maioria de instituições científicas, exibem hoje a mesmíssima evidência sobre a dieta humana: deve ser plant-based, ou seja, assente maioritariamente em alimentos do reino vegetal. Afirma a OMS que “um regime alimentar saudável ajuda a proteger contra as doenças não-transmissíveis, incluindo a diabetes, as doenças cardíacas, os acidentes vasculares cerebrais e o cancro.”

Todas estas instituições afirmam de forma clara — e apoiada em estudos de largo espectro temporal —, que a dieta ocidental moderna apresenta sérios riscos para a saúde humana. Saiu, por estes dias, uma notícia muito triste: em 2019, os novos diagnósticos de cancro entre as pessoas com menos de 50 anos aumentaram 79,1% em relação a 1990. Os fatores de risco envolvidos são alimentação e estilo de vida.

Lê-se num relatório da EAT-Lancet que “a transição para dietas saudáveis até 2050 vai requerer alterações substanciais: o consumo global de frutos, vegetais, frutos secos e leguminosas terá de duplicar e o consumo de carne vermelha e açúcar terá de diminuir mais de 50%. Uma dieta rica em alimentos de origem vegetal e com menos alimentos de origem animal proporciona uma saúde melhor e traz benefícios para o ambiente.”

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A dieta humana deve ser plant-based, ou seja, assente maioritariamente em alimentos do reino vegetal DR

Para que essa transição seja possível, vale-nos o facto de sermos uma espécie omnívora, com grande capacidade de adaptação a diferentes habitats e capaz de aí descobrir alimentos para criar dietas saudáveis. Para mal da nossa saúde, a dieta ocidental moderna não é uma delas. Na realidade, seguimos uma dieta extrema, feita da aliança entre sal, açúcar e gordura, com um impacto muito imediato no palato, ao contrário da dieta recomendada, onde se mastiga e saboreia; onde se encontram tonalidades gustativas que os extremos escondem. As recomendações alimentares baseadas em provas científicas indicam uma dieta de assimilação, que sacia mais o corpo, apesar de o impacto inicial ser subtil.

Pode dizer-se que estamos — ou tudo indica que deveríamos estar — a transitar de uma era refinada para uma era integral, de uma idade do sangue para uma idade da seiva. Não participar nessa transição não só raia o negacionismo, mas pode também afetar muito tragicamente as nossas vidas, porque, como se sabe, “o corpo é que paga” — expressão que é hoje intermutável com “o planeta é que paga”. Na realidade, se nos encararmos como células individuais que fazem parte de um todo cheio de vida, percebemos o quanto o nosso corpo e o planeta são uma e a mesma coisa. Doenças degenerativas como o cancro são inflamações do corpo; o planeta está inflamado e com febre.

Sabendo o que se sabe da relação entre cancro e dieta, temos de mudar a ementa. Fazê-lo significa ter quatro oportunidades por dia para isolar e extinguir, dentro dos nossos organismos, células ecocidas, convencidas de que estão melhor sós do que bem acompanhadas. Dada a nossa avidez, pode a nova dieta implicar algum desconsolo. Talvez resulte pensar a fome para além da comida, sentindo, por exemplo — e apesar de toda a impossibilidade —, uma fome ancestral, um desejo voraz por um mundo mais justo e bem-disposto.

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