Ter teto não é ter casa

As casas eram grandes, bonitas, novas, assim como os elevadores, os espaços verdes, os equipamentos para as crianças, mas, aos poucos, vi também a degradação, a falta de manutenção, de acompanhamento.

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Era o fim do ano letivo, brinquei com uma aluna sobre o facto de ter faltado bastante às aulas nas últimas semanas. Por fim, lá me explicou que era imigrante sem documentos e estava a passar por uma fase complicada ao nível administrativo, tinha problemas de alojamento e pouca disponibilidade para vir às aulas.

Senti-me estúpida e tive vergonha. Como é que eu não tinha visto nada? É verdade que ela era uma boa aluna, tinha boas notas, estava sempre bem-humorada e parecia feliz com as suas amigas da turma. Nada fazia transparecer, em todo o caso, de forma evidente, a sua situação precária. Foi mais uma lição de humildade sobre como não julgar ninguém a partir das aparências.

Mesmo não sabendo a sua situação, deveria ter pensado nessa possibilidade. Ela, como muitas outras alunas e alunos, até pode ter um teto, mas não tem casa. Vive em situação de grande pobreza sem as condições necessárias ou adequadas para poder, por exemplo, estudar ou até ter refeições recentes.

Há poucos dias, na rádio, lá estava mais um caso, início das aulas, entrevista-se uma aluna que vive num quarto minúsculo sem casa de banho com o irmão e a mãe. A menina diz que não pode estudar ali, mas que a escola está ao corrente da situação e deixa-a estudar num local próprio. Ser mãe isolada, com um só salário, não ter a boa cor de pele atira muitas pessoas para a rua, mas também para tetos que não são casas.

Esta semana, o Presidente Macron foi entrevistado por um youtuber sobre questões relacionadas com a juventude, o entrevistador insiste sobre a falta de apoios para os jovens entre os 18 e os 25 anos que não têm direito ao equivalente do rendimento mínimo, o Presidente argumenta que o Estado parte do princípio de que existe um apoio familiar, passa-se a outra questão, sem que seja referido que muitos jovens estão em situação de conflito familiar, situações onde o teto não é uma casa, porque é um lugar tóxico, como no caso de jovens LGBTI+ que ou são maltratados ou não ousam dizer quem são, com medo de perder o teto e de não encontrar casa.

Estes lugares tóxicos assemelham-se aos das mulheres vítimas de violência que, por não terem condições para ter casa, permanecem no mesmo teto que o agressor. Isto passa-se em França, mas também em Portugal. Quando oiço falar de Mais Habitação, penso: “Mais” não chega, é preciso melhor.

Três semanas depois da “não-visita” do Papa à Serafina, uma equipa de reportagem da SIC Notícias voltou ao local, e lá continua o Luís com teto, mas sem casa, vivendo em condições inimagináveis numa capital europeia. Ele, como tantas e tantos outros moradores, não vê nem todos os cafezinhos que o Presidente da CML, Carlos Moedas, diz tomar no bairro, nem o seu “contacto diário” com as pessoas que ali moram, nem a sua preocupação que muitas vezes não o “deixa dormir à noite”, e ainda menos qualquer ação.

Segundo a reportagem: “A autarquia tem 800 milhões de euros para investir em habitação na capital, mas a Serafina e o Bairro da Liberdade, cuja origem é clandestina, ficaram de fora.” Diz ainda a reportagem que a CML, contactada pela SIC, “não esteve disponível para prestar esclarecimentos”.

O Luís pede que seja feito na Serafina o que foi feito no Bairro da Boavista. Ora, eu acompanhei do interior o realojamento das pessoas do Bairro da Boavista para o novo bairro social, assim como o de uma parte do Bairro do Zambujal. Lembro-me da alegria de quem vivia nas barracas, de quem tinha um teto, mas passou a ter uma casa. “Foi o melhor dia da minha vida”, disse-me o João, que viveu o realojamento como se fosse um prémio e não como o cumprimento de um direito.

As casas eram grandes, bonitas, novas, assim como os elevadores, os espaços verdes, os equipamentos para as crianças, mas, aos poucos, vi também a degradação, a falta de manutenção, de acompanhamento. O mau funcionamento dos elevadores, os obstáculos para as pessoas com dificuldades de locomoção. A humidade nas casas, as canalizações defeituosas, os ratos, as baratas. Habitações que continuaram a ser tetos, mas que, aos poucos, se foram tornando menos “casa”.

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