Cientistas dizem resolver buraco na lei dos EUA que deixa ursos-polares vulneráveis

É possível quantificar o impacto das emissões de gases de estufa de um projecto industrial na sobrevivência dos ursos-polares, dizem investigadores, que apelam a mudança da lei norte-americana.

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Cientistas mostram que a sobrevivência dos ursos-polares pode estar relacionada com as emissões de gases com efeito de estufa Mathieu Belanger/REUTERS
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Uma equipa de cientistas desenvolveu uma forma de quantificar o impacto que as emissões de gases com efeito de estufa de projectos concretos – uma exploração petrolífera, por exemplo, ou uma central térmica – têm nas populações de ursos-polares. Pode parecer uma picuinhice, mas não é: este trabalho, publicado na revista Science, pode permitir ultrapassar o subterfúgio legal na Lei das Espécies Protegidas dos Estados Unidos, que tem impedido a protecção devida a estes animais do Árctico.

A imagem de um urso-polar perdido num bloco de gelo a flutuar na água, algures no Alasca, tornou-se um símbolo do aquecimento global. Neste momento, estima-se que existam entre 22 mil e 31 mil ursos-polares, divididos por 19 populações, e a espécie é classificada como "vulnerável" na lista da União Internacional para a Conservação da Natureza.

Os ursos-polares foram a primeira espécie a ser incluída na lista de ameaçadas pelas alterações climáticas ao abrigo da Lei das Espécies Protegidas, em Maio de 2008, prevendo-se que dois terços destes animais carismáticos do Árctico possam desaparecer até meados do século XXI.

Mas em Outubro do mesmo ano, um advogado que trabalhava para o Departamento da Administração Interna do Presidente George W. Bush, e que é também um conhecido lobbyista do sector petrolífero, produziu um memorando que cortou o âmbito dessa protecção.

O memorando 37017 visa a secção 7 da Lei das Espécies Protegidas, que determina o processo através do qual as agências federais norte-americanas se asseguram de que as actividades que financiem ou autorizem, incluindo as relativas à exploração de petróleo e gás natural, não põem em perigo a sobrevivência de espécies protegidas.

Ora, David Bernhardt, assim se chama o advogado, considerou, na sua opinião, que não seria preciso accionar a secção 7 a não ser que ficasse claro que o impacto das emissões de gases com efeito de estufa em projectos que estão a ser considerados (como a extracção de petróleo no Alasca, por exemplo) pudesse ser destrinçado do impacto de todas as emissões históricas globais.

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O estudo desenvolveu um método para calcular o impacto das emissões de um determinado projecto na sobrevivência futura das crias de ursos polares e, logo, da manutenção da população. Robert Visser/Greenpeace/REUTERS

“Qualquer efeito das alterações climáticas num membro de uma espécie protegida ou o seu habitat crítico será a consequência da acumulação colectiva de gases com efeito de estufa de fontes naturais e de origem antropogénica”, e “não pode ser atribuída às emissões de nenhuma fonte em particular”, concluía David Bernhardt, num parecer que tem influenciado a interpretação da legislação para protecção dos ursos-polares. Bernhardt chegou a secretário da Administração Interna na Administração de Donald Trump.

“Apesar da relação entre o aquecimento e a perda de gelo no mar, a ausência de um elo quantitativo entre as emissões antropogénicas de gases com efeito de estufa, perda de gelo, e declínio das taxas vitais dos ursos-polares tem frustrado a aplicação plena da Lei das Espécies Protegidas para os ursos-polares”, explicam Steven Amstrup (Polar Bears International e Universidade do Wyoming) e Cecilia Bitz (Universidade de Washington) no artigo publicado na Science esta semana.

Jejum do Verão

Criou-se um paradoxo: “É estranho” que os ursos-polares tenham sido protegidos por causa da perda de gelo no Árctico que se deve ao aquecimento global, “mas que as emissões não tenham sido consideradas”, disse à Associated Press Steven Amstrup.

Amstrup e Bitz dizem, no artigo publicado 50 anos depois da entrada em vigor da Lei das Espécies Protegidas nos EUA – aprovada na Administração de Richard Nixon –, ter desenvolvido um método estatístico para relacionar as emissões de gases com efeito de estufa com alterações na demografia dos ursos-polares e alterações no seu habitat.

O seu ponto de partida foi uma investigação publicada em 2020 na revista Nature Climate Change, da qual Cecilia Bitz foi a segunda autora, em que se relacionou a sobrevivência projectada dos ursos-polares com a duração do jejum a que esta espécie está sujeita durante o Verão, quando a redução do gelo faz com que seja mais difícil caçar, procriar e cuidar das suas crias e os animais sobrevivem à custa das suas reservas de gordura, perdendo cerca de um quilo de massa corporal por dia. Têm de nadar mais longe para procurar presas, como focas, e apesar de poderem nadar grandes distâncias, podem afogar-se. Ou então têm de se aventurar terra dentro, potenciando conflitos com humanos.

O aquecimento global provocado pelas emissões de gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono (CO2), faz com que se reduzam os dias em que o oceano Árctico está coberto de gelo e facilita a deslocação dos ursos-polares. O estudo de 2020 determinou que o número de dias sem gelo estava relacionado com a sobrevivência das crias.

No estudo agora publicado, Amstrup e Bitz quantificaram o número de dias sem gelo e de dias de jejum, relacionando-os com uma quantidade específica de emissões de dióxido de carbono equivalente (métrica utilizada para comparar as emissões de vários gases com efeito de estufa, baseada no seu potencial para alteração). Por exemplo, as centenas de centrais eléctricas nos Estados Unidos emitirão mais de 60 gigatoneladas (milhões de toneladas) de emissões ao longo de 30 anos, o que reduz em 4% o número de crias de ursos-polares que chegam a uma idade em que conseguem ser independentes na população que vive no Sul do mar Beaufort, no Árctico.

Ligar os pontos

“Quando o memorando de Bernhardt foi escrito, em 2008, não conseguíamos dizer como é que os gases de estufa de origem humana se relacionavam com o declínio das populações de ursos-polares. Mas passados alguns anos, podemos relacionar directamente a quantidade de emissões com o aquecimento global e também com a perda de gelo no Árctico”, disse Bitz, citada num comunicado de imprensa da sua universidade. “O nosso estudo mostra que não só o gelo no mar como a sobrevivência dos ursos-polares podem ser directamente relacionados com as emissões de gases com efeito de estufa”, concluiu Cecilia Bitz.

O objectivo é fazer um cálculo directo do impacto das emissões de um determinado projecto na sobrevivência futura das crias de ursos-polares e, logo, da manutenção da população.

O mesmo método pode ser adaptado para outras espécies e outros habitats com relação directa com o aquecimento global, como recifes de corais ou tartarugas-marinhas. “É basicamente ligar todos os pontos”, comentou Amstrup à Associated Press.