Quando dermos por ela, teremos um Big Brother em cada esquina

Numa situação em que direitos fundamentais das pessoas estão em causa, ninguém tomou a liberdade de pensar na necessidade de uma supervisão.

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Está a acontecer um pouco por todo o país e o debate à volta do assunto é quase zero. Falo da instalação de sistemas de videovigilância em larga escala em cidades do norte ao sul do país. Estes sistemas incluem dezenas de câmaras e preveem um controlo sistemático de tudo o que se passa no espaço público. São 24 horas por dia, todos os dias da semana.

No Porto, o sistema está a funcionar desde junho. Arrancou com 79 câmaras, mas Rui Moreira anunciou uma segunda fase, com a instalação de mais 117 câmaras, e manifestou confiança numa terceira fase: “Com certeza que virá.” Não é caso único. Mais cidades estão a fazer o mesmo: Portimão, Olhão, Leiria, Estremoz, etc..

A PSP é a responsável pelos sistemas. Isto significa que será a PSP a ver e a guardar as imagens e que fará isso sem nenhuma supervisão. Tem tudo para correr bem. Numa situação em que direitos fundamentais das pessoas estão em causa, ninguém tomou a liberdade de pensar na necessidade de uma supervisão.

Por outro lado, nos pedidos de licenciamento dos sistemas a PSP manifesta a ligeireza com que encara o tema. Fundamenta os pedidos na prevenção da criminalidade, na suposta confiança que os cidadãos têm nestes sistemas e na “efetiva disponibilidade das pessoas para abdicar, na medida do necessário e em termos proporcionais, da sua privacidade em função da colocação de sistemas de videovigilância.” É uma opinião da PSP.

Será que isto chega para fundamentar um pedido?

A restrição de direitos fundamentais só é possível quando estão em causa outros direitos fundamentais e se essa restrição for indispensável à preservação desses direitos. Há uma absoluta proibição do excesso. A primeira coisa a notar é que nos pedidos da PSP nem se nota a preocupação em justificar a indispensabilidade dos sistemas de videovigilância. Tecem umas considerações gerais sobre segurança e assumem que essa é a vontade das pessoas. É claro que isto revela bem a incapacidade da PSP de assumir responsabilidades sozinha num tema destes.

É certo que Portugal é um dos países mais seguros do mundo e que, de acordo com um recente Relatório Anual de Segurança Interna, na última década a criminalidade desceu 42%. Assim, é difícil justificar a necessidade de sistemas de videovigilância com estas características.

A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) tem arrasado estes pedidos e tem suscitado as maiores reservas ao seu deferimento, chegando mesmo a dar pareceres negativos. Mas temos aqui outro problema gravíssimo: é que desde 2012 não é obrigatório parecer positivo da CNPD para instalar sistemas de câmaras fixas em locais públicos. Esta é a única entidade que estaria habilitada a fazer uma apreciação legal destes pedidos e sobretudo a única vocacionada — e preparada para acautelar os direitos das pessoas que estão aqui em perigo e que se prendem com a liberdade e a privacidade. Isto não é pouca coisa. Quem está a autorizar estes pedidos nestas condições? O próprio Ministério da Administração Interna (MAI).

Há sistemas que preveem o recurso a inteligência artificial (IA). É assim nas cidades de Leiria e Portimão. Rui Moreira declarou que, também no Porto, a PSP poderá vir a recorrer a essa tecnologia. Mas o Supervisor Europeu de Proteção de Dados reconhece que o uso de IA levanta muitas questões de direitos fundamentais, sobretudo quando utilizada em larga escala. É outra pequena amostra da leviandade com que tudo isto está a ser tratado.

Estamos a falar de uma mudança radical nas cidades. As ruas deixarão de ser um espaço de liberdade e passarão a ter um controlo tipicamente autoritário. Ninguém se comporta da mesma maneira quando sabe que está a ser filmado e essa diferença no comportamento das pessoas é sinónimo de castração e contenção. Temos direito a não ser filmados. Este debate já existiu em Portugal; recordo-me de ter sido tema nas autárquicas de 2005, mas, agora que está a acontecer e com uma proporção nunca imaginada, não está a ser levado a discussão pública. Valem-nos os alertas da Associação D3 – Defesa dos Direitos Digitais. Não é suficiente. Quando dermos por ela, teremos um Big Brother em cada esquina. Não será em cada esquina um amigo.

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