A pirâmide invertida do jornalismo precário

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"Estamos na silly season, época em que os malfadados incêndios enchem os oráculos" LUSA/MIGUEL A. LOPES
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Estamos sôfregos de diretos. É meia-noite e meia, e uma jornalista que conheço, com filhos pequenos, está a relatar o que acontece ou não acontece num incêndio. Não há casas ameaçadas, mas aquele direto na televisão — assim decidiu quem a enviou para o terreno —, é de extrema importância, àquela hora, onde apenas se avista o negrume da noite, e alguns focos luminescentes.

A base do jornalismo, que serve de sustentação à matéria necessária para ‘encher’ canais 24h informativos e noticiários de quase duas horas —, encontra-se de uma forma geral vítima da precariedade. E como todas as vítimas, dar voz é sempre difícil. Na realidade, o que se perceciona nos correspondentes locais/regionais dos principais canais de televisão, é uma disparidade salarial, quando comparados com os colegas que trabalham nas redações centrais. A maioria a recibo verde, paga à peça ou avençada, e com uma rotina vertiginosa de trabalho. Não questiono sequer a responsabilidade de um pivô de televisão, mas a desigualdade de salários é demasiadamente gritante, e talvez até injusta.

Estamos na silly season, época em que os malfadados incêndios enchem os oráculos, e os jornalistas correspondentes lá vão retratando o que acontece, debaixo de fumo e de fogo, arriscando a vida, por imagens mais comoventes, enquanto do outro lado de lá, alguns editores pedem que se aproxime ainda um pouco mais do chocante e do trágico, esquecendo a segurança dos repórteres.

Numa abordagem da precariedade, subsistem dois tipos de jornalismo: o jornalismo que se faz sentado, e o jornalismo que exige que saltemos da cadeira. Curiosamente, parece que o jornalismo sentado acaba por ser mais bem compensado financeiramente. Sei de jornalistas e repórteres de imagem que andam no terreno e que se ganharem mil euros limpos esfregam as mãos de contentes. Normalmente, têm mais que uma profissão, não têm filhos ou poucos, alguns até vivem debaixo da alçada dos pais e sabem que o final do mês é sempre uma incerteza, avençados ou pagos à peça, por vezes, por produtoras subcontratadas pelas grandiosas televisões.

Os barões da televisão pagam milhares a ‘vedetas’, mas, por outro lado, estimulam a precariedade do jornalismo. Esta realidade é também aplicável a algumas rádios e jornais.

Outra tendência que se verifica, e que não é recente, é a centralização da informação, com o fim ou abandono, ainda que parcial das delegações regionais e seus correspondentes. Uns acabaram a trabalhar a partir de casa, outros perderam mesmo o posto de trabalho e os órgãos de comunicação continuam a outorgar-se de nacionais, sem que muitas vezes tenham um número de notícias regionais que justifique essa dita cobertura nacional.

Este aspeto, fica percetível também nos espaços de comentário televisivos. Não raras vezes, oiço calinadas referentes ao panorama regional, que refletem um profundo desconhecimento da realidade além Lisboa e Porto.

Dá-se também o caso, em alguns órgãos de comunicação, de as notícias de foro regional darem apenas um ‘jeitaço’ a quem aos domingos, pretende ‘encher chouriços’ com as feiras do queijo e o festival do cabrito, ou ainda no caso das tragédias, como a de Pedrógão que colocou os pivôs literalmente no meio das cinzas. Provavelmente nunca mais lá voltaram.

Salvo raríssimas exceções e que devem ser honradas, os correspondentes normalmente são pouco valorizados. Estes jornalistas, afastados dos grandes centros de decisão, vivem e, em alguns casos, sobrevivem, unicamente por paixão.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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