Redução da indústria das celuloses é essencial no combate ao fogo e ao deserto

A habitabilidade do território, e o orgulho de um povo, não passa por se deixar invadir por uma espécie única. Não passa pela submissão à ganância de um sector.

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Recentemente, António Redondo, CEO da The Navigator Company, a maior empresa de celulose a operar no nosso país, sugeriu que Portugal deveria expandir a sua área de eucaliptal para garantir a sustentabilidade da empresa, apelando à “valorização de uma espécie única de que Portugal se pode e deve orgulhar”.

O objetivo de uma afirmação destas pertence, obviamente, à Doutrina de Choque cujo objetivo é confundir as pessoas e inverter todos os processos e percursos de racionalidade em sociedade e em política pública. Mimetizando os blitzkriegs militares, a Navigator lança do seu longo braço mediático e académico para tentar a derradeira negação da realidade: o eucalipto não pode não ter futuro em Portugal, ou Portugal não terá futuro.

Acima da sustentabilidade/crescimento da empresa Navigator e dos seus acionistas, importa salvaguardar o bem comum, e esse passa em primeiro lugar pela salvaguarda das condições de base da sustentabilidade da vida. A habitabilidade do território, e o orgulho de um povo, não passa por se deixar invadir por uma espécie única. Não passa pela submissão à ganância de um sector ou de uma companhia cuja bandeira de papel limpa o orgulho de mais de 80 países.

Existe apenas um racional estritamente economicista na proposta de expandir a ocupação de eucalipto do território nacional ainda além do milhão de hectares já ocupados. O interesse em plantar em áreas não ocupadas por eucalipto, em vez de replantar em áreas já ocupadas por esta espécie exótica e invasora pós-incêndio, é que as áreas já ocupadas estão em forte declínio de produtividade pela própria intensificação da cultura.

A replantação tem um custo acrescido com a destruição de cepos dos eucaliptos existentes no local e que pode ascender a mais de 50% do custo de uma mera plantação com esta espécie em áreas atualmente com outras ocupações. Todavia, para replantação, reconversão ou entrada em ciclos contínuos de incêndios encontram-se no país mais de 700 mil hectares ao abandono ou sob má gestão e a aguardar um resgate. Este resgate é pago pela população e por contribuintes nacionais e europeus.

Eventuais novas plantações, pelo historial acumulado nas últimas décadas, seriam abandonadas após o terceiro corte, criando problemas acrescidos para as futuras gerações, mas com a atual evolução das alterações climáticas, podem nem sequer chegar aí antes de as plantas arderem.

As áreas ocupadas por eucaliptos têm uma tendência crescente de envolvimento na área ardida, seja na área total ou na área de povoamentos florestais. De acordo com dados oficiais, no período de 2012 a 2021 a área de eucalipto ardida correspondeu a 19% da área ardida total e a 41% da área ardida em povoamentos florestais.

Em 2016 e 2018, chegou a 29% e 31%, respetivamente, da área ardida total e a 63% e 62%, respetivamente, da área ardida em povoamento florestal. Em 2017 arderam mais de 127 mil hectares de área ocupada por esta espécie exótica, o equivalente a quase 13 vezes a superfície do concelho de Lisboa. O futuro não perspetiva inversão da tendência de envolvimento do eucaliptal na área ardida em Portugal.

O eucaliptal é menos perigoso do que outras ocupações florestais? Vários especialistas em fogos insistem em atenuar o impacto, mas entre 2012 e 2021 arderam 284.770 hectares de eucaliptal, menos cerca de dois mil hectares do que ardeu em pinhal bravo no mesmo período (embora eucaliptal e pinhal tenham diferentes impactos nos territórios, com clara vantagem para o pinhal bravo a nível económico e social).

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Sabemos que no pinhal bravo há forte responsabilidade na gestão do património do Estado. Entre 2012 e 2021, relativamente à área total ardida em eucaliptal, 29,21% dessa área corresponde ao que ardeu em ocupações com quercíneas (sobreiro, azinheira e outros carvalhos), 3,28% em pinhal manso e 0,99% em ocupações com castanheiro. É evidente o impacto diverso das diferentes ocupações florestais em matéria de incêndios florestais.

E os matos, ardem mais ou menos do que os povoamentos florestais? Necessariamente, há que distinguir os matos. Diferentes tipos de matos, diferentes impactos em incêndios. Em termos globais, na década 2012-2021 ardeu mais área de povoamentos florestais do que área de matos e pastagens. A área ardida em povoamento florestal ascendeu a 626 mil hectares (dos quais 285 mil em eucaliptal, 45,5%) e a área ardida em matos e pastagens a 547 mil hectares.

Se a exigência das celuloses é ocupar áreas de matos e pastagens com plantações de eucaliptal, estes dados só confirmam o perigo acrescido para as populações de mais eucaliptal. Ao risco agravado do eucalipto volátil e projétil nos incêndios, acrescem os cenários das alterações climáticas com ventos mais fortes e de quadrante leste e maior escassez de água nos solos (para o que o eucaliptal já contribui).

Ainda nos recordamos dos discursos de vários dirigentes e governantes do PS contra a Lei da Liberalização do Eucalipto (Decreto-Lei 96/2013). A expansão do eucaliptal, de forma legal, está proibida por lei. Sabemos que essa questão é sempre circunstancial e que as leis feitas à medida das celuloses ocorreram tanto na Lei da Liberalização do Eucalipto como nas décadas anteriores e mesmo depois dos incêndios de 2017. A porta do cavalo inscrita sob a forma de “permutas” de áreas de eucaliptal aquando da interdição da plantação de eucaliptos em 2017 é o exemplo mais claro disso.

No entanto, nada disso chega. Não existe limite à voracidade e ao desplante desta indústria, não há vergonha no 27 da Fontes Pereira de Melo, que quer recolocar o debate das celuloses e do eucalipto fora da realidade essencial: a dimensão da indústria das celuloses em Portugal é um crime contra a população e o território, e a sua redução significativa é um imperativo político base no combate aos incêndios, à desertificação e à sistemática perda de biodiversidade.

Subscritores (por ordem alfabética): Ana Henriques, Ana Silva, Beatriz Xavier, Fernando Antunes Amaral, Guida Marques, João Camargo, Maria Teresa R. Rito, Miguel Dias, Miguel Manso, Mónica Casqueira, Nina van Dijk, Paulo Pimenta de Castro, Pedro Triguinho

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico.

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