Cultivar a solitude, mas fugir à solidão

Sempre acompanhada pelos risos dos meninos que acompanho nas consultas, pela conversa dos pais e, ao serão, pela alegria dos meus filhos adolescentes, nunca sinto verdadeiramente solidão.

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"Gosto de estar sozinha, seja em silêncio, seja a dançar, seja entretida com hobbies" Tirachard Kumtanom/pexels
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Faz-me bem o silêncio absoluto na natureza. Nutre e revitaliza-me a alma, liberto a sobrecarga dos estímulos do dia-a-dia.

Quando descobri a meditação dinâmica, progressivamente adquiri outras capacidades de contemplação, mas também de manter o foco, vantagens obtidas pelo treino da atenção plena, mais conhecida por mindfulness — hoje em dia, palavra desgastada, viralizada num mundo manipulado por um vasto grupo de “influenciadores” graduados em erudição fast food, visando o lucro fácil, mas que infelizmente arrastam multidões atrás de si —, com provas dadas cientificamente pela activação do sistema nervoso oposto ao que nos inunda de ansiedade e de stress.

Cingindo-me ao que pretendo transmitir, gosto de estar sozinha, seja em silêncio, seja a dançar, seja entretida com hobbies.

A solitude significa que nos sentimos bem com o nosso ser e é em solitude, longe do ruído de fundo, que conseguimos reflectir melhor, olhando para o interior, saindo pontualmente do ritmo frenético dos dias.

Sempre acompanhada pelos risos dos meninos que acompanho nas consultas, pelas conversas dos pais e, ao serão, pela alegria contagiante dos meus filhos adolescentes, nunca sinto verdadeiramente solidão.

A solitude é um bem a cultivar, mas a fronteira entre esta e a solidão é ténue. É sabido que, hoje em dia, grande parte das pessoas se sente e está sozinha, mesmo que não o admita. Uma solidão, na maioria dos casos, disfarçada pela sensação enganadora de companhia e atenção, obtida na interacção através do mundo virtual.

Este isolamento, atingiu níveis críticos pelo castigo que foi o longo confinamento exigido pela pandemia, com uma reviravolta drástica dos nossos hábitos sociais, obrigando a níveis extremos de contacto entre humanos apenas online.

Atualmente, as idades mais atingidas pelo isolamento social são as da adolescência, adultos jovens, e classicamente, os mais idosos. E não é fácil reverter ou alterar um hábito. Enquanto os mais novos sofrem de solidão sem darem conta, saindo dos quartos apenas para obrigações escolares e familiares, e regressando ao grupo virtual logo que possível, os mais velhos padecem de um mal crónico, fruto de uma sociedade que os ostraciza e os considera um fardo.

Existe outro tipo de solidão, acompanhada, a de reuniões de convívio que idolatram as aparências, cumprem os objectivos de oportunismo latente, mas não preenchem o ser.

Não pretendo generalizar, pois felizmente muitos são os jovens que mantêm um equilíbrio entre a convivência real e a virtual; muitos de todas as idades têm grupos de verdadeiros amigos; e muitos são os mais velhos que se inserem em actividades da comunidade, existindo também boas pessoas que os ajudam a combater a solidão.

Mas também muitas outras pessoas necessitam de ultrapassar a zona de “segurança”, para fazerem novas amizades, ou fortalecerem as antigas. Uma das formas de atrasar quadros de demência é o contacto humano, com pessoas com quem nos identificamos, e nos acrescentam.

Ao escrever estas linhas, e apesar de apreciar imenso a solitude, confesso a minha própria dificuldade em socializar, seja por falta de tempo comum no grupo de amigos, seja pelo cansaço do trabalho que me faz preferir manter-me na zona de conforto, seja pela minha personalidade, que não me facilita incluir desconhecidos no meu círculo próximo, embora não me confine ao mundo virtual nem ao sofá.

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Grupo em Braga Vânia Mesquita Machado

Com o meio século já vivido, resolvi tentar mudar essa forma de ser, quando me apercebi que a minha solitude estava no limiar da solidão, mesmo sentindo-me bem assim, talvez por observar que os meus filhos já não são meninos e em breve fico de ninho vazio.

Recentemente, aderi a um grupo que se reúne há anos na minha cidade para correr ou caminhar. Custou-me bastante, mas já sinto os frutos desta mudança. O tempo é escasso, mas com força de vontade todos conseguimos alterar hábitos.

Sermos pessoas em plenitude requer mostrarmos o nosso lado humano, não só na forma de estar no mundo em contacto com quem nos vamos cruzando no dia-a-dia, mas também procurando activamente um maior contacto com o próximo.

Da recente visita do Papa Francisco a Portugal, o que me vai ficar na memória é a gigantesca onda de seres que se uniram para sentirem a proximidade humana, a genuína, a do encontro com o outro, e fortalecerem a fé e a esperança no nosso futuro como humanidade.

No nosso microcosmos pessoal, não precisamos de abdicar da solitude, que permite ir ao encontro da nossa essência através da reflexão, para fugir à solidão, procurando reaproximarmo-nos dos outros, com o único propósito de sermos verdadeiramente pessoas, contribuindo para sermos mais felizes, individualmente e como um todo.

E é isso que dá significado à existência.

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