Vai-se a ver e o Papa só bebeu vinho do Porto

Só, enfim, é como quem diz, porque num país que liga pouco a um dos melhores vinhos do mundo, o comentário de Francisco sobre um Colheita Graham’s 1974 não é pouca coisa.

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O Papa Francisco escolheu água e vinho (mas só um do Porto e de 1974) EPA/ALESSANDRO DI MEO
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Então vamos lá pôr os pontos nos ii sobre os vinhos que o Papa Francisco e toda a comitiva provaram domingo ao final do dia a bordo do avião da TAP entre Lisboa e Roma. Não, não foi só um vinho branco do Tejo que já deu que falar. Foram vários vinhos e de diferentes perfis. A saber: o branco Marquesa de Alorna Grande Reserva 2019 (Tejo), da Quinta da Alorna; o rosé Dona Aninhas Reserva 2022 (Lisboa), da Quinta de São Sebastião; o Dolium Reserva 2014 (Alentejo), de Paulo Laureano, o espumante Aliança Grande Reserva, 2018 (Bairrada), da Bacalhoa Vinhos, o Porto Colheita Graham's 1974 (Symington) e a aguardente velha de vinho Verde Ferreirinha (Sogrape).

Os vinhos estavam disponíveis para todos os passageiros, sendo que cada um escolheu segundo as suas preferências. No caso do Papa Francisco, e segundo explicou o chef Vítor Sobral ao Terroir, “o Santo Padre, durante as entradas e os pratos principais, bebeu água. Foi só com a sobremesa que bebeu o vinho do Porto”.

Cozinheiro de mérito em Portugal e no Brasil e consultor da TAP para a criação dos menus da classe executiva, esta é a terceira vez que Sobral prepara a refeição de regresso dos Papas a Itália (duas vezes para o Papa Bento XVI e esta para o Papa Francisco). A curiosidade impõe-se. Então, que diferenças de reacção à comida existe entre os dois Papas? Bem treinado, o chef assegura que “a simpatia e a cordialidade estão sempre presentes, independentemente do Papa (isso é uma regra), mas, como qualquer criança sabe, este Papa é muito especial. Eu tinha de estar atento aos detalhes para que nada falhasse, pelo que não deu para falar com o Papa durante a viagem, a não ser os cumprimentos que deu a toda a tripulação quando entrou e saiu do avião, mas fiz questão de sorrir e chamar-lhe a atenção quando foi servido o Porto com a sobremesa porque estava próximo dele. O Papa provou e comentou: 'fantástico’. Aliás, outras pessoas do staff só beberam água com os pratos principais, mas julgo que só uma é que não bebeu o Porto, o que revela bem a notoriedade do grande vinho português.”

Os vinhos servidos a bordo foram escolhidos a partir de uma lista mais vasta sugerida pela equipa de Vítor Sobral. Se no menu a regra é a valorização dos produtos portugueses, no caso dos vinhos a ideia é a mesma, mas vinhos que tenham um perfil mais internacional. Ou seja, facilmente apreciáveis por uma comitiva com gente de várias nacionalidades (explicar vinhos e castas autóctones num avião com gente de todo o mundo que está atenta a qualquer improviso do Papa Francisco não é lá muito funcional).

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O Marquesa de Alorna & Co

Dos vinhos em causa conhecemos com maior detalhe o Marquesa de Alorna, o Dolium e o espumante Aliança. Aliás, deu-se o caso de, no passado dia 25, termos provado o Marquesa de Alorna de 2019 na companhia da enóloga que o cria - Martta Simões – e a propósito de um trabalho que publicaremos esta quarta-feira sobre controlos de maturação de uvas. Este branco topo de gama da Quinta da Alorna só se produz em anos especiais. Entre 2009 e 2019 lançaram-se seis colheitas de Marquesa de Alorna Grande Reserva, sendo que em breve será lançada a edição de 2021.

Em 160 hectares, Martta Simões trabalha 19 castas regionais, nacionais e internacionais, em solos com diferentes perfis e vinhas com várias idades, coisa que se traduz em cerca de dois milhões de garrafas.

Uns meses depois da vindima, a enóloga começa a provar os vinhos de todas as castas que estão em barrica e vai assinalando aqueles que se destacam. Em provas seguintes confirma se a primeira impressão estava ou não correcta para, num momento posterior, criar um lote com as melhores barricas, sendo que as castas nem sempre se repetem e nem sequer são comunicadas. Donde, o Marquesa de Alorna é sempre uma selecção das melhores barricas de cada ano.

Nos primórdios - e por questões de moda - o vinho estava marcado pelas barricas novas. Hoje, nota-se menor peso da barrica, seja pelo uso de algumas barricas usadas, seja pela maior volumetria das mesmas, menor tosta interior ou, inclusive, pelo facto de uma parte do lote final (30%) não passar por madeira. No caso da colheita de 2019, estamos perante um branco que ganhou complexidade em garrafa, apresentando-se nesta altura – e é mesmo agora que deve ser apreciado – com elegância e nobreza, com o tal perfil que o coloca num plano cosmopolita. Sim, sente-se o trabalho das borras finas, mas tudo envolvido com notas cítricas e frutos de polpa branca (nêsperas). Na boca, volume, frescura (boa acidez) e equilíbrio. Um branco que pode estar à mesa de qualquer banquete, sem que tenhamos de nos endividar (30€).

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O tinto Dolium é o resultado do trabalho de Paulo Laureano na exploração das castas autóctones, sendo que, neste caso, a frescura do vinho deve-se à riqueza e à diversidade de uma parcela de vinhas velhas, em particular ao papel da Trincadeira e da Tinta Grossa e, também, do Alicante Bouschet. É um alentejano genuíno (50€).

Já o espumante Aliança Grande Reserva é o testemunho de um trabalho continuado há décadas por parte de Francisco Antunes em Sangalhos – homem com grande domínio na criação de espumantes. Feito a partir de Baga e de Chardonnay, a finura e a cremosidade do espumante devem-se aos cuidados na selecção dos vinhos base e ao tempo de estágio sobre borras (mais de três anos e meio). Custa 28€.

O Porto e a aguardente

A última vez que vimos a aguardente Ferreirinha foi durante um jantar de lançamento do Legado, em Santo Tirso, em 2021, mas como havia um Vintage desafiante na sala das aulas de química do Colégio das Caldinhas onde estudou o senhor Fernando Guedes (provar vinhos em mesas inclinadas foi um desafio e peras), não lhe demos grande atenção. Entre um Vintage recuado que o enólogo Luís Sottomayor descobre nas caves da Ferreira e uma aguardente, o nosso coração não balança, mas, sabem os aficionados, a aguardente Ferreirinha é um caso à parte. O que é necessário é encontrar-se um momento de consumo na refeição que não seja apenas no final desta, mas isso já são outros quinhentos.

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Quanto ao Colheita Graham´s 1974 (Single Harvest para algumas firmas inglesas), nunca nos passou pelo nariz e pela boca. Tendo em conta a alma progressista de

Francisco, perguntamos a Vítor Sobral se havia aqui uma mensagem subliminar. Resposta do chef: “Não, não foi essa a intenção, o que nos interessou foi simplesmente o tawny extraordinário que é. Só isso”. Temos cá as nossas dúvidas, mas adiante.

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O vinho que tem quase a idade do 25 de Abril custa €400. Barato não é, mas não nos esqueçamos que estamos perante um vinho do Porto que foi guardado durante 50 anos em cave, a ser bebericado lentamente pelos anjos. E isso tem o seu preço (€8 por ano). Aliás, ocorre-nos agora perguntar como estarão as caves de Gaia, as caves da Madeira e de Moscatel de Setúbal a preparar os 50 anos do 25 de Abril? É preciso indagar o assunto.

O que se comeu

Os custos do menu (o protocolo sempre sugere sempre razoabilidade), a identidade da gastronomia portuguesa e a logística de uma refeição a bordo são as três variáveis que entram na equação do jantar para a comitiva que acompanha as viagens do Papa a partir de Portugal. Tudo isso é um trabalho que se faz a uma distância de cinco meses, com propostas de produtos debatidas ao detalhe e sigilo garantido em todo o processo (os menus do Papa só são revelados depois de as refeições terem ocorrido). A própria tripulação (com a equipa de Vítor Sobral) teve, por razões de segurança, de pernoitar toda na véspera no mesmo hotel.

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Vai daí, o menu servido ao Papa e à restante comitiva foi este: entrada: presunto bísaro, queijo Serra da Estrela, figos e compota de figos; prato de peixe:, cherne corado com creme de tomate assado, hortelã e batata-doce e vegetais salteados; prato de carne: vitela estufada em vinho do Porto, puré de nabo, amêndoa e alecrim; sobremesa: torta de laranja, creme de pistácios e pêra rocha assada.

É Vítor Sobrar a deixar que os produtos portugueses brilhem por si, sem maquilhagens, com um toque aqui e ali de uma ou outra erva aromática. O presunto foi bísaro para que não aparecesse algum espanhol ou italiano a fazer comparações com coisas que têm na terra deles. Esperto.

Sobral veio de São Paulo a Lisboa no dia 5 para preparar e acompanhar a refeição a bordo do Airbus Gonçalo Velho Cabral e regressou à mesma cidade no dia 7 de Agosto. Quando lhe perguntamos se não seria interessante servir esse menu nos seus restaurantes em Lisboa, responde assim: “Em São Paulo vou fazer isso porque já me pediram, cá... não sei se alguém quer provar o menu.”

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