Amnistia: poder-dever de perdoar

O Tribunal Constitucional já firmou jurisprudência no sentido de que o princípio de igualdade em leis de amnistia “só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis”.

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A recentemente aprovada lei da amnistia e redução de penas, de jovens entre os 16 e 30 anos (à data da prática do crime), pelos crimes cometidos até ao dia 19 de Junho de 2023, tem de ser visto como um meio de honrar a visita do Papa a Portugal, a propósito da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), cujo pontificado tem sido marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, o que justifica adotar medidas de clemência focadas nos destinatários centrais do evento – isto é, jovens até aos 30 anos, segmento que justifica o limite etário.

O direito de graça ou de clemência, no âmbito do qual se incluem as medidas da amnistia e a redução de penas, é um instrumento útil não só para a realização da justiça, nos casos em que a aplicação da lei dá lugar a decisões materialmente injustas ou político-criminalmente inadequadas, como também pode satisfazer fins particulares, como a sobrelotação das prisões, o festejo perante a visita de figura ilustre ou vitória militar.

A este propósito, para muitos um absurdo e para outros uma homenagem a Sua Santidade, é essencial distinguir duas perspetivas que não se podem confundir: por um lado, a oportunidade da iniciativa; e, por outro, a constitucionalidade da lei tal como se encontra preconizada.

Quanto à oportunidade de iniciativa, pese embora não se possa ignorar o (óbvio) propósito de alívio do sistema, a medida não é inédita, visto que noutras visitas papais aconteceu algo semelhante. Nas seis ocasiões anteriores (Paulo VI, em 1967; João Paulo II, em 1982, 1991 e 2000; Bento XVI em 2010; Francisco em 2017), houve três casos de amnistias: em 1967; em 1982 e em 1991. Na exposição de motivos da proposta entretanto aprovada pelo Parlamento, é aludido «o seu testemunho de vida [do Papa Francisco] e de pontificação fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal», o que, por si só, parece justificar as medidas de clemência focadas nos jovens. Depois, tem sido considerado que a decisão de amnistiar é um ato assente na pura discricionariedade política e, portanto, insindicável quanto à sua oportunidade.

Questão diferente é a de saber se o conteúdo da lei resiste ao crivo constitucional à luz do princípio da igualdade. Entre muitas questões suscitadas em torno do tema, saber se o fundamento da delimitação dos destinatários das medidas de clemência se pode bastar com o foco dos destinatários centrais do evento, isto é, jovens até aos 30 anos, suscita cuidada reflexão, ainda que se saiba que na amnistia e/ou no perdão genérico avulta a ampla margem de manobra do legislador quanto à delimitação do campo de aplicação das medidas de clemência a tomar.

A este propósito, em 1995, em dois acórdãos distintos, o Tribunal Constitucional firmou jurisprudência no sentido de que o princípio de igualdade em leis de amnistia e de perdão genérico «só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis» (acórdão n.º 42/95 do TC), devendo por isso entender-se que «tratamentos legais diferentes só traduzem uma diferenciação arbitrária quando não é possível encontrar um motivo razoável decorrente da natureza das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível para essa diferenciação» (Cf. acórdão n.º 152/95). Por esta razão, entendemos que não estamos perante um quadro genérico demasiado aberto, parecendo existir dificuldade em justificar que a exclusão em razão da idade é um tratamento arbitrário censurável, sendo explicável e racionalmente compreensível por razões de política criminal expressas na proposta aprovada.

A lei entra em vigor no dia 1 de Setembro e parece, assim, confirmar que os princípios que inspiram medidas de clemência previstos na Constituição e no nosso sistema penal estão, em grande medida, em sintonia com o magistério de Sua Santidade o Papa Francisco e que em nada se confunde com a laicidade do Estado. A este propósito, não esquecemos, finalmente, que o nosso ordenamento jurídico estabelece um regime excecional em matéria penal, para os jovens de idades entre os 16 e os 21 anos, uma vez que os malefícios da pena de prisão são particularmente acentuados nas idades mais jovens, sendo este regime norteado pelo princípio de que os jovens são merecedores de um direito penal mais reeducador do que sancionador.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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