Respeitar os professores sem os instrumentalizar (apenas para ganhar uns votos)

Estranha-se (ou não) que só agora o Presidente tenha decidido entrar em confronto com o Governo e a maioria parlamentar que o apoia, para criticar uma solução que ele próprio já havia validado.

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Entre 2009 e 2023, os trabalhadores públicos perderam 14,1% do seu poder de compra. O impacto da inflação sobre o aumento de salários implicou, assim, uma perda de 12,9% entre 2009 e 2022, e de aproximadamente 1,2% em 2023, já que a inflação projetada para este ano é de 5,8% e a função pública apenas terá tido um aumento médio de salários de 4,6%. E perderam poder de compra face a salários de partida já escandalosamente baixos, objetivamente e por comparação a outros países europeus.

Mas, mais do que isso, o congelamento das progressões na carreira e as políticas sucessivas de contenção salarial conduziram a uma degradação do estatuto dos professores e tem contribuído para a baixa atratividade dessa profissão. Aliás, as opções tomadas entre 2010 e 2017 – recorde-se que a contagem do tempo de serviço correspondia a um direito consagrado no artigo 37.º do Estatuto da Carreira Docente que foi suspenso pelo artigo 24.º, n.º 9, da Lei do Orçamento para 2011, proposta por governo do PS e mantida durante (e para lá) do Programa de Assistência Financeira – podem ser interpretadas como contrárias ao princípio da segurança jurídica e da previsibilidade (por terem defraudado expetativas legítimas de quem entrou na profissão) e ao princípio da proporcionalidade (por se terem mantido para além do fim do Programa de Assistência Financeira), de onde decorreria a sua inconstitucionalidade.

Sem quaisquer rodeios: os salários dos professores são indesejavelmente baixos e merecem uma atualização que reponha uma repartição equitativa dos ganhos recentes obtidos pela economia portuguesa.

Tal como noutros domínios, os salários baixos não refletem uma sociedade que preza o valor do esforço de quem trabalha, nem contribuem para uma coesão social, que é potenciadora de bem-estar e de liberdade de quem depende do seu salário para a exercer, em plenitude. Num tempo de recuperação económica, não pode descurar-se a distribuição socialmente justa desses resultados. Por conseguinte, a recuperação do tempo de serviço dos educadores de infância e professores, que esteve congelado entre 2011 e 2017, pode constituir um instrumento precioso para conseguir essa subida gradual dos salários, desde que integrado numa estratégia mais global e assegurada a sustentabilidade financeira dessas medidas.

Agora, como bem alertou o Presidente da República na sua declaração que acompanhou o veto político do diploma do Governo que estabelecia um regime especial de aceleração da progressão na carreira docente, o que não se pode é instrumentalizar este tema para “calcular dividendos políticos”.

Ora, tendo em conta que o Governo tomou uma decisão que desagrada aos professores (e seus sindicatos) e que recolhe a oposição de todos os partidos da oposição – com exceção da Iniciativa Liberal –, parece evidente quem pode tentar extrair dividendos políticos desta situação.

Desde logo, o próprio Presidente da República que invoca, agora, a alegada injustiça da decisão de reposição parcial da progressão (mediante aceleração), mas que promulgou o Decreto-Lei n.º 36/2019, que apenas repôs 2 (dois) anos, 9 (nove) meses e 18 (dezoito) dias relativamente a um tempo total de 9 (nove) anos, 4 (quatro) meses e 2 (dois) dias, que corresponde ao decorrido entre 2011 e 2018. Ora, esse diploma visou contornar os artigo 18.º e 16.º, respetivamente das Leis dos Orçamentos para 2018 e 2019, que previam a recontagem do tempo de serviço, “relevando, para o efeito, os pontos ainda não utilizados que o trabalhador tenha acumulado durante o período de proibição de valorizações remuneratórias”, ainda que sujeita a negociação com os sindicatos, quanto às carreiras especiais (como a dos professores), por força dos artigos 19.º e 17.º daquelas leis. Quer essas leis orçamentais, quer o Decreto-Lei n.º 36/2019 que não as implementou, por completo, foram promulgadas pelo Presidente da República.

De onde se estranha (ou não) que só agora – depois da eclosão da crise originada pelo pedido (recusado) de demissão do atual ministro das Infraestruturas – o Presidente da República tenha decidido entrar em confronto com o Governo e a maioria parlamentar que o apoia, para criticar uma solução que ele próprio já havia validado. É que, se quiseremos ser sérios, a solução agora vetada era muito mais favorável aos professores que aquela que vigora desde 2019, quando o Presidente validou a solução governamental de recuperação (apenas) parcial de tempo de serviço. E, para sermos francos, esta diatribe presidencial apenas terá como efeito deixar os professores pior do que estariam, caso o diploma entrasse em vigor. Ficam na mesma, e não veem recuperado nenhum do prejuízo até aqui sofrido, até que se encontre nova solução.

Outro argumento incompreensível do veto presidencial reside no tratamento diferenciado entre professores a exercer funções em escolas públicas no continente e nos arquipélagos dos Açores e da Madeira. Por ter sido deputado constituinte e ter aprovado esse regime de autonomia regional, o titular do cargo de Presidente da República sabe muito bem que ela se traduz em autonomia legislativa regional e que, em tantas outras matérias, já existe divergência de tratamento de trabalhadores públicos, de cidadãos e de empresas. Ora, é verdade que, por iniciativa de um governo regional do PS, os professores a exercer funções nos Açores já tinham recuperado o tempo de serviço entre 2011 e 2017 (cfr. Decreto-Legislativo Regional n.º 15/2019/A), como até o tempo de serviço que foi congelado entre 30 de agosto de 2005 e 31 de dezembro de 2007 (cfr. Decreto-Legislativo Regional n.º 26/2008/A). E o mesmo se tinha passado na Madeira, ainda que mediante diluição no tempo dos efeitos financeiros, visto que as atualizações remuneratórias só ficarão completas em 1 de janeiro de 2025 (cfr. Decreto Legislativo Regional n.º 23/2018/M).

Sucede, porém, que o argumento é absolutamente falacioso. A existência de um regime jurídico mais favorável nos Açores e da Madeira resulta da circunstância de a Constituição reconhecer que os custos da insularidade justificam a existência de autonomia legislativa que permite, justamente, a criação de situações de desigualdade (justificada), com vista a compensar essa mesma insularidade. Como é evidente, esse regime mais favorável permite compensar a dificuldade de recrutamento de professores e atrair docentes que residam no continente e que podem, assim, beneficiar de um regime estatutário e remuneratório mais favorável.

Aliás, se o Presidente da República estava tão convicto que a solução legislativa adotada pelo Governo seria inconstitucional, é caso para perguntar: por que razão não enviou o diploma para o Tribunal Constitucional, ao invés de o vetar politicamente?

Ninguém tem ilusões. O Presidente quis provocar mais este incidente de medição de forças com o Governo.

Não sendo nenhum novato na vida política, sabe bem que o veto político implicará a continuação de greves e manifestações – que, aliás, estimula (na prática) com esta decisão – e que o início do ano letivo se aproxima. Também sabe que, caso o governo pretenda contornar o seu veto político, terá que submeter uma proposta de lei à Assembleia da República, para que esta, depois do devido processo legislativo, possa confirmar a decisão e superar o veto presidencial, forçando-o a promulgar (cfr. artigo 136.º, n.º 2, da Constituição). Ora, os trabalhos parlamentares só se iniciam em 15 de setembro e a proposta de lei de Orçamento para 2024 será apresentada até 10 de outubro, o que implicará uma suspensão dos procedimentos legislativos ordinários até final de novembro. Também sabe que a Constituição, através da norma-travão (cfr. artigo 167.º, n.º 2), impede que sejam acrescentadas despesas às previstas na lei do orçamento, pelo que, se o novo regime de progressão entrar em vigor depois da Lei do Orçamento para 2024, essas valorizações remuneratórias não podem ser pagas aos professores, salvo aprovação de orçamento retificativo.

Em suma, o Presidente quis – e fez questão – de contribuir para criar caos e conflito. Não para solucionar o problema.

Tal como se tem vindo a comportar, age como se fosse o líder da oposição. Esvaziando, aliás, aquele que devia exercer essa função e condenando o partido de que ainda é militante à danação eterna. Como bem mostram as sondagens, os eleitores não veem alternativa à atual governação. Porque, na verdade, o Presidente também não deixa. E tal como fazia no seu programa “Exame”, na TSF, continua a dar notas sobre se a oposição (e os sucessivos líderes do PSD) está ou não em condições de se apresentar como alternativa.

Se qualificou António Costa como um “mata-borrão”, que absorve os problemas, Marcelo Rebelo de Sousa tem-se comportado como um “apagador do quadro” que o líder da oposição tenta pintar com tons carregados. Um Presidente enfadado com a falta de alternativas que a oposição apresenta corre o risco de a esvaziar ainda mais, substituindo-se-lhe. Fazer do Conselho de Estado um ringue de boxe político faz parte dessa estratégia. Ainda que mal sucedida.

Em suma, os bons resultados económicos e orçamentais devem convidar o Governo e a Assembleia da República a refletir sobre como devem ser redistribuídos os ganhos daí resultantes. Sem dúvida, o caminho deve ser o reforço salarial dos trabalhadores públicos. Mas a ponderação desses impactos financeiros – e do equilíbrio entre as várias carreiras da função pública – deve ser feita por quem tem mandato popular para isso. Ora, também não pode esquecer-se que o Programa Eleitoral do atual Governo não previa essa recuperação integral do tempo de serviço. Tal debate deve fazer-se, portanto, no espaço público e no parlamento.

Não podem é aqueles que criaram o problema – a saber, os partidos de direita que apoiaram a suspensão das progressões e os cortes de salários, em 2011 – e aquele que validou a solução de recuperação apenas parcial, em 2019, vir agora chorar lágrimas de crocodilo, apenas porque é popular fingir estar ao lado dos professores.

Isso sim, seria (e, infelizmente, é) agir segundo as conveniências do momento, para dele extrair “dividendos políticos”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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